Título: Jaburu e Planalto não se escolhe
Autor: Moura, Paola de; Magalhães, Heloísa
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2010, Especial, p. A14

Reeleito no Rio com 5,2 milhões de votos, 66,08% do total válido, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), já anunciou que não quer mais concorrer a cargo político. Mas promete entregar o Rio daqui a quatro anos livre do tráfico armado ao seu sucessor: o vice-governador Luis Fernando Pezão. Apesar da pacificação das favelas cariocas tê-lo transformado num nome nacionalmente reconhecido, diz que voltar ao Senado ou à Câmara dos Deputados não o comove. Já ser presidente ou vice-presidente da República não são escolhas do próprio candidato e sim fruto da contingência política momentânea. O governador cita o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o atual vice-presidente, José Alencar, como exemplos de políticos que não planejaram longamente chegar aos cargos majoritários e afirma que a perseguição de tal anseio pode até matar. Nos últimos dias, o governador também defendeu temas polêmicos como a liberalização da maconha, do jogo e a descriminalização do aborto. Para Cabral, o que o Brasil precisa é por o pé no chão e "discutir a vida como ela é", como acredita ter feito ao pedir a ajuda do Exército e da Marinha para invadir o Complexo do Alemão. Leia abaixo a entrevista dada ao Valorna última segunda-feira no Palácio das Laranjeiras, um dia antes de anunciar três novos secretários, o deputado federal Brizola Neto, do PDT (Trabalho e Renda), o deputado estadual Felipe Peixoto, também do PDT (Desenvolvimento Regional), e o engenheiro Ronald Ázaro (Turismo).

Valor: No primeiro mandato, o senhor contou com a parceria do presidente Lula que aumentou consideravelmente o volume de investimentos no Rio. Como será a parceria com Dilma Rousseff?

Cabral: A Dilma foi muito importante para que essa parceria se realizasse. Ela, como chefe da Casa Civil, protagonizou em praticamente todas as áreas as ações do governo federal no Rio. Não houve semana em que o Pezão ou eu, o Régis [senador e ex-secretário da Casa Civil Régis Fichtner, que volta ao cargo no próximo mandado], ou ainda algum secretário estivesse sempre em contato com ela, com a Miriam Belchior, ou com alguém da equipe dela. Eu tenho muito otimismo em relação à Dilma. Não muda nada.

Valor: Não houve desgaste na sua relação com a Dilma em função do anúncio frustrado de Sérgio Côrtes para o ministério?

Cabral: Foi uma declaração precipitada. Ela é uma admiradora do trabalho do Côrtes. Havia uma injunção política do PMDB. Eu compreendo. Ela tem que ter uma base parlamentar para dar sustentação. Depois disso já estive com ela sem problema nenhum.

Valor: A segurança foi a marca de sua administração anterior. O senhor vai mantê-la?

Cabral: A marca da administração foi a gestão. A grande razão para estas conquistas que nós obtivemos, todas, tem como causa principal a gestão. Ter um bom time ao seu lado e investir em concurso público. Nós abrimos 52 mil contratos de trabalhos em quatro anos. Fomos o primeiro governo de Estado na América do Sul a receber o triple A da Standard&Poors. Criamos um escritório de gerenciamento de projetos porque o governo federal tem uma regra: se você entrar no Cadin [Cadastro de informação de créditos não quitados do setor público federal], você não recebe dinheiro. Quando começamos a ter esta relação com Lula e os recursos começaram a vir, primeiro tínhamos que ter recurso em caixa para dar a contrapartida. Mesmo assim, um convênio com o Ministério da Justiça, por exemplo, não era liberado porque tinha outro com o dos Esportes feito no governo Marcelo Alencar, no da Rosinha, do Garotinho, ou do Brizola, que não foram prestadas as contas ou não foi paga a contrapartida. Sem isso o governo federal não liberava. Então o Régis criou o Escritório de Gerenciamento de Projetos, que faz acompanhamento passo a passo, vai limpando, pagando, esclarecendo ou cancelando convênios. E isso nos permitiu avançar barbaramente.

Valor: E o próximo governo? Qual será a marca?

Cabral: Concluir a gestão. Porque é difícil construir e é fácil destruir. Gestão é a base de tudo.

Valor: Seu candidato após seu governo é um gestor?

Cabral: É sim. É o Pezão, um grande gestor. É o candidato. Porque nós temos que dar continuidade ao nosso projeto que se demonstrou vitorioso. Não é por minha causa, não é por causa do Régis. É um conceito de integração, de parceria.

Valor: O senador eleito Lindberg Farias não almeja ser candidato?

Cabral: O Lindberg foi uma grata surpresa como companheiro de jornada e já está sendo como senador. Ele declarou publicamente que apoia o Pezão. Isso, sem eu ter pedido. Fez numa reunião onde, dos 92 prefeitos do Rio, pelo menos, 88 estavam presentes. Tiro meu time de campo. O bom de tirar o time de campo é você poder olhar para frente e dizer: o jogo continua e com um time bom.

Valor: E o seu caminho é o Senado ou o Jaburu?

Cabral: Jaburu e Planalto não se escolhe. Tenho certeza que se você perguntasse ao José Alencar em 2000 qual o cargo ao qual ele seria candidato, diria naturalmente que seria à reeleição ao Senado em Minas ou ao governo de Minas, jamais à Vice-Presidência. Se você perguntasse ao senador Fernando Henrique Cardoso, em 1993, se ele ia ser candidato à Presidência, ele ia dizer que possivelmente seria candidato a deputado federal. Mas eu trabalhei muito pela eleição da Dilma e o Rio deu a ela, por justiça, uma grande votação. Vou trabalhar muito pelo êxito de seu governo porque é o êxito da vida do povo. Vamos reeleger uma mulher com meu amigo Michel Temer de vice.

Valor: O senhor vai lagar a política?

Cabral: Faço política desde os 16 anos de idade com muito prazer. Com estímulo de fazer coisas que possam melhorar a vida das pessoas. Comecei cedo. Fui o deputado mais votado da história do Rio. Fui presidente da Assembleia Legislativa, o senador mais jovem do Brasil e o primeiro governador reeleito do Estado. E acho que vou concluir bacana este processo, com 51 anos.

Valor: O senhor não vai participar das Olimpíadas?

Cabral: Infelizmente não tenho mais idade para participar de qualquer modalidade. O meu projeto é estar na Avenida Atlântica, no último andar do Museu da Imagem do Som [MIS], dependendo da hora, com água de côco ou champanhe, assistindo os vários eventos de Copacabana. Se o governador [fazendo referência ao Pezão que estava ao seu lado] me chamar para a abertura junto com o prefeito Eduardo [Paes], se Deus quiser reeleito, eu vou.

Valor: Mas sem mandato nenhum governador?

Cabral: Sou gestor. Eu tenho tesão pela gestão. Não tenho perspectiva de mandato em 2014. Acho que concluí um ciclo.

Valor: Mas o senhor acumula um passado que lhe dá aval até para a Presidência. Não tem vontade?

Cabral: Presidência não é vontade, não é desejo, é contingência. E a contingência, se Deus quiser, será um quadro nacional muito favorável à reeleição da Dilma. Se ela quiser me convidar para um cargo de ministro, vou avaliar. Mas a princípio agora não me comove. Deputado federal não me comove. Voltar ao Senado não me comove. Quem sabe não vou ser executivo do Instituto Luiz Inácio.

Valor: O senhor é da mesma geração de jovens lideranças, como o Aécio Neves em Minas e o Eduardo Campos em Pernambuco que têm ambições na política...

Cabral: Essa sofreguidão mata as pessoas. Eu já vi isto na história dos últimos quarenta anos no Brasil. Desde o Lacerda. As pessoas sofrem e se infelicitam por isso e aí a vida não fica boa. Eu sempre falo isso para o Aécio. Ele é meu grande amigo. Pega os Ermírio de Moraes, olha o que esses caras já fizeram pelo Brasil. Pega o Beto Sicupira [Carlos Alberto Sicupira] e o Jorge Paulo Lehman [donos da 3G Capital]. Pega os Gerdau e olha o que esses caras já fizeram pelo Brasil. São verdadeiros heróis nacionais. Olha o que o Eike [Batista] está fazendo pelo Rio.

Valor: O senhor promete entregar o Rio livre de tráfico armado?

Cabral: Compromisso de campanha.

Valor: Todas? As 300 favelas?

Cabral: Não são 300, nem 400, nem 500. É como uma guerra. Vou dar um exemplo: o desembarque na Normandia para a derrota do nazifascismo. Uma vitória sobre o eixo dos aliados num país da África significou muito pouco para o conjunto da guerra. O desembarque da Normandia significou muito.

Valor: O Alemão seria a Normandia?

Cabral: Não sei te dizer se foi o Alemão, mas acho que sim. Haverá muitos casos semelhantes a esse, não mais como o desembarque, mas haverá vitórias e reconquistas territoriais que fragilizarão a milícia e o tráfico. Vamos continuar este trabalho. Se houver necessidade de reconquista territorial, nós faremos. Se não houver, podemos fragilizar a milícia pela prisão de líderes, por exemplo, como fizemos na semana passada [no dia 21, 25 milicianos foram presos em Duque de Caxias]. Não haverá nenhum território que você peça licença aos poderosos de plantão. Isso eu tenho certeza absoluta.

Valor: Quando o senhor entra na Rocinha?

Cabral: Não tenho prazo, estamos formando policiais. Mas o mais importante é o baque econômico financeiro e estratégico dos bandidos. Foram 400 motos apreendidas, 600 toneladas de maconha. Aquilo ali era um entreposto. O hub do mal era o Complexo do Alemão e o Complexo da Penha. Eles podem ter se transferido para a Maré, para o Juramento? Podem. A gente tem informação que tem um pouco aqui e um pouco ali. Mas como hub já têm dificuldade.

Valor: O senhor vai usar o Exército em outras operações como essa?

Cabral: Não foi discutido isso ainda. Primeiro temos que experimentar. Estou muito bem impressionado com a qualidade, o planejamento e o conhecimento do General Sardenberg [comandante da Força de Paz do Exército no Rio].

Valor: O senhor não teme algum tipo de questionamento constitucional por conta do uso indeterminado das Forças Armadas?

Cabral: Como disse muito bem o Nelson Jobim [ministro da Justiça], que já passou pelos Três Poderes, as pessoas ficaram anos e anos nas universidades, nas cortes, nos gabinetes debatendo enquanto a vida aqui fora foi piorando. O que nós estamos fazendo aqui impacta a vida de milhares de pessoas. Acho que é um precedente extraordinário para casos como esse. Muito bem delimitados a área e o papel de cada um. Isto não pode se banalizar, não queremos isto.

Valor: E no meio dessa discussão, com policiais arriscando a vida, por que o senhor defendeu a legalização das drogas?

Cabral: Das drogas leves. Sou favorável que haja uma experiência. Acho que deve ser discutido na Organização Nacional de Saúde, na ONU. A vodca e a cachaça são bebidas pesadas, muito mais pesadas que maconha. Eu não quero que nenhum filho fume machonha. É uma droga como o cigarro. Causa danos psiquiátricos, assim como a cachaça e a vodca. O cigarro causa danos físicos e orgânicos de dependência, e mata. A maconha e seus derivativos já são utilizados para fins médicos em vários países.

Valor: Mas o senhor não teme que neste momento em que o soldado está lá combatendo o crime com risco de vida, o senhor seja mal interpretado?

Cabral: De jeito nenhum, porque ele sabe que estou defendendo uma tese. O [Franklin Delano] Roosevelt quando defendeu a liberação do álcool em 1922 não foi mal interpretado. Naquela época, se você tomasse uísque seria preso. Eu trago os temas polêmicos à tona porque eles precisam ser discutidos. O tema do jogo é ridículo. Você tem toda a Europa, o Paraguai, a Argentina e os Estados Unidos. E os que proíbem: o Brasil, o Afeganistão e Cuba. A questão do aborto, ninguém é favorável. Quantas mulheres procuram a interrupção da gravidez por ano? A classe média vai a clínicas clandestinas. Mas a grande maioria das mulheres não tem onde fazer. Faz de uma maneira precária e volta para o SUS. Segundo o ministro Temporão [Saúde] são 250 mil a 300 mil. Não entendo porque não discutimos isso. Temos tratar da vida como ela é. A reforma política não é nada. Vamos tratar de voto obrigatório. Em qual país civilizado do mundo que o voto é obrigatório? Me diga um. Não existe. O que é a fidelidade partidária? É financiamento público?

Valor: O senhor continua preocupado com a questão dos royalties e como as prefeituras aplicam o dinheiro, já que agora, o volume vai diminuir?

Cabral: O problema não é punir uma cidade porque recebe o dinheiro do royalties. O problema é cidades que têm prefeitos que usam mal o dinheiro dos royalties. Mas tem outro problema: a imprensa sempre pega lá o azulejo de Rio das Ostras como exemplo. Mas, atualmente, lá o saneamento básico é exemplo para o Brasil, 100% das casas. Quando chegou o texto no Congresso, eles [os deputados] vinham logo com a história de Campos, de Macaé, porque foi dito durante longo tempo que o dinheiro não era bem aplicado. E isto foi usado como argumento. Eu dizia, o Rio Estado aplica melhor que a Suécia e a Noruega. Todo o dinheiro vai para o Rio-Previdência, para pagar aposentadorias e 5% para o Fundo Estadual de Conservação Ambiental. E tem ainda outro problema, o FPE [Fundo de Participação dos Estados] para o Rio é o segundo menor do Brasil, só perde para São Paulo. Somos os maiores contribuintes. O que a Bahia e Pernambuco recebem de FPE eu nunca discuti. É Justiça, é distribuição de renda.

Valor: E o senhor não acha que a bancada do Rio pode tentar uma alternativa à perda de arrecadação como, por exemplo, propor a cobrança do ICMS na fonte?

Cabral: Não adianta. Os estados são contra.

Valor: E o FPE?

Cabral: O FPE vai mudar. Mas não porque eu quero. Por uma decisão do Supremo. O Supremo já decidiu que os critérios devem mudar em 2012.

Valor: Governador, o arco rodoviária, uma importante via de acesso e de solução econômica para o Estado não está atrasado?

Cabral: Chega a ser ridículo, o problema das pererecas deixou a obra parada um ano. Eu visitei um sítio arqueológico lá, tinha dois velhinhos, catando osso que não se sabe se é de índio ou de um tambaqui. De um lado equipamentos de milhões de dólares de um empreiteira e muitos operários paradas porque tinha dois velhinhos com alguns ossos. Aí tem que chamar arqueólogos e o Ibama tem que olhar. São cartórios que o Brasil tem em nome de preservação de temas nobres, como ambiental e cultural que se exagera na dose. Professores universitários, entidades corporativas que se juntam para arrumar emprego para um monte de gente e ganhar dinheiro. No arco rodoviário tem uma floresta de eucaliptos, que o ambientalista normalmente chama de deserto verde. Para aprovar seu corte levamos um ano. As pessoas preferem a cultura do coitadinho. A perereca virou uma coitadinha. Você não pode passar uma máquina porque o mosquito tal que ela come e a biodiversidade... aí para uma obra. E a biodiversidade do ser humano que mora ali na Baixada Fluminense?