Título: Rolagem da dívida pública: um debate necessário
Autor: Rodrigues, Walter Aluisio M.
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2010, Opinião, p. A16

Se as distorções atuais forem mantidas, em 2030 a parcela que hoje corresponde a 13% poderá chegar a 90%

Passadas as eleições e iniciada a fase de transição nos governos federal e estaduais, ressurge a discussão sobre a necessidade de readequação dos contratos de rolagem da dívida pública dos Estados e municípios com a União. Em especial, volta à baila a questão da abusiva taxa de juros e índice de atualização monetária utilizados nos ajustes.

O excesso de retórica na discussão, aliado a utilização recorrente de argumentos equivocados, tem dificultado a construção de um debate sério e claro sobre a questão da dívida pública. Assim, cabe afastar os argumentos que evitam ou poluem a discussão, a fim de torná-la mais transparente e, principalmente, justa, pois tal debate é de fundamental importância para o País.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a origem dessa dívida. Entre 1997 e 2000, a União firmou acordos com Estados e municípios para a rolagem de suas dívidas. Estávamos às vésperas da implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal e era condição sine qua non que os entes federativos tivessem seu endividamento equacionado.

Nesse contexto, a União captou recursos no mercado financeiro, mediante a emissão de títulos, e quitou as dívidas de Estados e municípios com seus credores, em sua maioria instituições financeiras, e os entes federados subnacionais passaram a dever para a União. Não se pode perder de vista que todo esse processo foi criado para ajudar na solução da dívida pública brasileira. Porém, hoje o que vemos é um efeito justamente contrário, já que os citados contratos de rolagem da dívida tornaram-se fonte de desequilíbrio fiscal nos Estados e nos municípios.

E o pior de tudo é que aqueles que alertam para os riscos futuros muitas vezes são mal interpretados e taxados de irresponsáveis. Por isso, alguns esclarecimentos são bastante oportunos.

O primeiro ponto a ser analisado diz respeito às críticas sobre um possível relaxamento fiscal, caso as distorções existentes nos contratos sejam corrigidas. Ora, em nenhum momento foi proposto adiar os pagamentos da dívida ou prorrogar os prazos contratuais, o que já demonstra que o argumento é descabido. Com efeito, a proposta defendida pelos Estados e municípios é justamente um avanço em termos de responsabilidade fiscal, pois, na medida em que busca corrigir uma grave distorção na taxa de juros e no índice de atualização monetária, desarma uma "bomba relógio" programada para explodir daqui a 30 anos.

No caso da Prefeitura de São Paulo, os pagamentos mensais da dívida comprometem a significativa parcela de 13% das receitas municipais, o que somente neste ano de 2010 significará cerca de R$ 2,4 bilhões. Em 2030, quando o contrato se encerra, o saldo devedor ainda existente deverá ser pago em 10 anos, sem qualquer limite de comprometimento da receita municipal. E as projeções indicam que, caso as distorções atuais sejam mantidas até lá, a parcela que hoje correspondente a 13% das receitas municipais poderá alcançar a marca estratosférica de 90%.

Para o Gestor Público irresponsável ou pouco comprometido com a sustentabilidade fiscal de longo prazo, esse arranjo até poderia ser confortável, pois só geraria implicações práticas em 2030, com o colapso financeiro da Prefeitura. Felizmente, não é esse o pensamento do atual prefeito da cidade, Gilberto Kassab, e de sua equipe de governo, que trabalham diariamente para conservar a saúde fiscal do Município e têm empreendido esforços significativos no sentido de estabelecer um canal de diálogo com o Governo Federal e com a sociedade paulistana, no intuito de encontrar soluções para o problema da dívida pública.

Outro argumento equivocado e que tem sido bastante repetido é o de que as alterações na taxa de juros e no índice de atualização monetária seriam vedados pela Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF. Pura retórica. As restrições impostas pela LRF dizem respeito à celebração de novos contratos de refinanciamento, adiamento dos prazos existentes ou novação (troca de uma dívida por outra). Ora, uma eventual proposta de ajustes nos custos de carregamento da dívida obviamente não se encaixa em nenhuma das três restrições impostas pela LRF e o argumento, novamente, apenas serve para confundir a sociedade e evitar o debate.

Deve ser combatido, também, o argumento de que as distorções atuais se compensam com os subsídios que foram dados no início dos contratos, quando a Selic estava em patamar mais elevado. Mais uma vez, a assertiva não resiste às evidências. Utilizando novamente o caso da prefeitura de São Paulo, nota-se que os encargos do contrato (IGP-DI + 9% de juros ao ano) foram mais de 40% superiores à Selic, quando comparados de forma acumulada desde o início do contrato até os dias atuais. Essa diferença gerou acréscimo na dívida da Prefeitura de mais de R$ 10 bilhões, caracterizando uma espécie de "transferência de renda" para a União.

Enfim, os esclarecimentos expostos apenas objetivam despoluir o debate. As distorções no contrato são claras, as propostas de correção são justas, a estrutura institucional permite o ajuste e os resultados revertem em favor da responsabilidade fiscal do País, pois assegura a sustentabilidade fiscal de longo prazo dos Estados e Municípios. Resta a dúvida: a quem interessa não solucionar o problema?

Walter Aluisio Morais Rodrigues pós-graduado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, é secretário de Finanças do município de São Paulo.