Título: Padrões nacionais de ajustamento
Autor: Pochman, Márcio
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2010, Opinião, p. A17

Hoje quase 45% do comércio mundial deriva das relações Sul-Sul estimuladas pela demanda asiática

Desde a crise global de 2008 que a maior parte dos países tem convergido gradualmente para três distintos padrões de ajustamento macroeconômico, cujas consequências apresentam-se, em geral, desfavoráveis ao Brasil. De um lado, o processo de valorização do real e, de outro, o aprofundamento silencioso da heterogeneidade estrutural do sistema produtivo com um todo. Ou seja, o contínuo decréscimo das vantagens comparativas da manufatura e serviços de maior valor agregado vis-à-vis às do setor primário-exportador acrescido, ainda, da ampliação do diferencial de produtividade entre setores inovadores e tradicionais e de grandes e pequenas empresas.

Neste contexto, mesmo que a economia nacional siga crescendo, a escala da produtividade nacional em relação à dos países ricos não tende a se reduzir, trazendo, por consequência, o risco da FAMA (combinação de FAzenda com MAquiladora) a predominar no interior do sistema produtivo. E se isso vier a se confirmar de fato, as condições de superação do subdesenvolvimento podem ficar postergadas, com o menor fôlego de sustentação do crescimento econômico em bases sólidas e geradoras de oportunidades universais de inclusão.

Como primeiro padrão de ajuste em curso destaca-se a reprodução de programas voltados ao ajuste fiscal nos moldes tradicionais do FMI, que fazem com que o resultado macroeconômico mais imediato seja a maior dependência das exportações frente à contenção do dinamismo doméstico. Para isso, o setor público volta a ser enquadrado na perspectiva de que a oferta interna do setor privado se eleve com base na ampliação da competitividade das exportações, geralmente aquelas de maior valor agregado na indústria e serviços. Isso, pelo menos, pode ser observado na trajetória adotada pelos governos dos países na União Europeia, especialmente liderados pela Alemanha.

Um segundo padrão de ajuste macroeconômico refere-se tipicamente às opções atuais dos Estados Unidos, em parte desfavoráveis ao ajuste fiscal e, em parte, favoráveis ao aumento das exportações de bens e serviços de maior valor agregado. O consumo interno das famílias permanece contido, mesmo com a baixa taxa de juros e a alta liquidez de dólares. Apesar dos bancos e empresas possuírem recursos disponíveis, eles não são encaminhados para a ampliação da produção e dos investimentos. Por isso, a ênfase na administração das reservas em dólar e nos títulos do governo estado-unidense em pleno ambiente de maior acirramento da competição global combinado com o menor crescimento da economia mundial e acrescido da pressão por redução de importações e elevação simultânea das exportações de produtos de maior valor agregado. A desvalorização do dólar no mundo procura seguir esse sentido.

Um terceiro padrão de ajuste macroeconômico não deriva propriamente da crise global de 2008, embora tenha adquirido aspectos especiais e adicionais a partir dela. Trata-se, em síntese, do avanço da perspectiva asiática que torna direta a correlação entre a expansão da produção e exportação manufatureira concomitante com a elevação das importações de produtos primários. Na sequência dessa trajetória verifica-se a redução relativa dos preços de bens industriais, o que faz com que paulatinamente seja preenchida parte crescente dos espaços anteriormente ocupados por produtos - não somente brasileiros - de maior valor agregado exportados. Em compensação, mantém-se contínua a importação e valorização dos preços dos produtos primários, condicionando a produção e exportação de países com maiores vantagens comparativas, como no caso brasileiro.

Ademais dos três distintos padrões de ajustes macroeconômicos neste período de saída pós-crise global, constata-se também a debilidade dos organismos multilaterais em estabelecer a coordenação necessária e a sincronia perfeita no tempo das políticas governamentais entre o conjunto dos países. O resultado tende a ser a gradual desestruturação do sistema produtivo global em prejuízo dos países assentados na primarização de suas pautas de exportação e em favor dos países ricos e asiáticos de industrialização tardia.

De um lado, os países ricos permanecem prisioneiros da crise global (armadilha japonesa) que torna a demanda interna frágil (contenção do consumo das famílias, retenção dos investimentos produtivos e elevada liquidez de empresas e bancos), fazendo crescer o risco da deflação dos preços industriais e a desvalorização cambial competitiva. De outro, a continuidade da ascensão de um novo centro dinâmico asiático, que cada vez mais recicla o excesso de dólares que resulta do superávit no comércio externo com investimentos na África e América Latina.

Atualmente, quase 45% do comércio mundial derivam das relações Sul-Sul fortemente estimuladas pela demanda asiática, ademais dos importantes investimentos diretos do exterior que já equivalem a 11% do PIB chinês utilizados, muitas vezes, na compra de propriedades fundiárias e de ativos dos grandes negócios e de empresas brasileiras. Resumidamente, parece ocorrer maior convergência do desempenho brasileiro no comércio externo com a dinâmica asiática, sobretudo no que diz respeito ao avanço dos setores de menor valor agregado em detrimento relativo daqueles com maior valor produtivo.

Tendo em vista que os três padrões atuais de ajuste macroeconômico parecem pouco contribuir no favorecimento sustentável da economia brasileira, cabe ao país a continuidade da busca do seu próprio caminho, aprofundando a integração sul-americana e as relações internacionais Sul-Sul. Para, além disso, cabe também destacar o reforço nas ações governamentais voltadas ao fortalecimento do setor produtivo, especialmente aqueles de maior valor agregado. Noutras palavras, a política governamental de substituição de importações industriais e de serviços mais sofisticadas, como nos fármacos, eletro-eletrônico, tecnologia de informação e comunicação, entre outros. Simultaneamente, o avanço nas ações governamentais de redução da heterogeneidade produtiva, com esforço sequencial na elevação da produtividade nos mais diferentes setores econômicos nacionais. A produção e difusão tecnológica e do crédito deve implicar no estabelecimento de novas instituições e regras que permitam descentralizar e expandir os serviços e bens generalizadamente nos setores produtivos, especialmente nos micro e pequenos negócios. Por fim, o enfrentamento permanente do processo de valorização cambial. Medidas de maior envergadura poderiam ser perfeitamente implementadas à luz das experiências internacionais de contenção do excesso de dólares. O que poderia pior, todavia, seria adoção de medidas de ajuste fiscal capazes de conter a demanda interna e favorecer ainda mais o peso exportador dos segmentos primários da economia nacional.

Marcio Pochmann é presidente do Ipea, professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp. Escreve mensalmente às quintas-feiras.