Título: Inflação causa escassez de dinheiro na Argentina
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2011, Internacional, p. A17

Os argentinos já conviveram com notas de 1 milhão de pesos, são experientes na arte de cortar zeros da moeda e suportaram inflação de quase 5.000% no fim dos anos 80. Talvez, por esse histórico, estejam encarando com tranquilidade o excêntrico problema que tem afetado o país desde as vésperas do Natal: a oferta insuficiente de dinheiro vivo. Há falta de troco para operações banais, o Banco Central encomendou à Casa da Moeda do Brasil a impressão de notas de 100 pesos e instituições financeiras fixaram limites para saques em caixas eletrônicos.

As distorções são resultado da escalada inflacionária, que não é reconhecida pelo governo, e da diminuição do poder de compra das notas maiores. Menos de 30% da população tem conta corrente e o uso de cartões de débito é muito menor do que no Brasil, por exemplo. Com isso, a demanda adicional por notas causada pelo pagamento do 13º salário e pelo aumento das compras evidenciou a incapacidade do BC de abastecer o mercado.

"Há alguns anos você ia ao supermercado com 100 pesos e enchia o carrinho. Hoje sai carregando duas sacolas de plástico", queixa-se o taxista José Alberto Orellana, inconformado com a alta dos alimentos. Com 100 pesos paga-se entre quatro e cinco quilos de peito de frango em um supermercado ou um jantar, para uma pessoa, com direito a entrada, vinho e sobremesa em um restaurante de um bairro elegante como Palermo.

Amplamente desacreditado, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) aponta inflação em torno de 11% em 2010. O ministro da Economia, Amado Boudou, insiste em dizer que a disparada dos preços tem afetado só os mais ricos. Medições independentes, porém, indicaram inflação de 24% a 26%, a alta mais forte desde que o país sentiu os efeitos da megadesvalorização do peso, em 2002. Neste ano, o país deverá encostar na barreira de 30% e disputará com a Venezuela o índice mais elevado da região.

Diante da escalada inflacionária, as notas de 100 pesos ficaram com o poder de compra reduzido. Como praticamente todos os trabalhadores formais conseguiram reajustes salariais repondo a inflação, o poder aquisitivo se manteve, mas ocorreu o óbvio: todos precisam de muito mais notas para fazer compras, começou a haver escassez e intensificou-se o problema já crônico da falta de troco.

A efígie do presidente Julio Roca (1843-1914), que ilustra as notas de 100 pesos, nunca esteve tão desprestigiada. Há cinco anos, essas notas correspondiam a 35% do papel-moeda em circulação na Argentina. Nos últimos meses, representaram até seis de cada dez novas notas a entrar no sistema financeiro.

Mesmo assim, a oferta não estava dando conta do alto volume de transações e o BC fez um convênio com a Casa da Moeda do Brasil para imprimir dinheiro em gráficas brasileiras. Nem isso solucionou o problema. No dia 24 de dezembro, contrariando a programação divulgada anteriormente, os bancos fecharam as portas ao público por causa da falta de bilhetes. Depois, instituições financeiras como o Banco Ciudad (de Buenos Aires) e o Nuevo Banco del Chaco (NBCH) resolveram limitar os saques a mil e a 500 pesos, respectivamente. Ao mesmo tempo, pediam que seus clientes usassem mais os cartões de débito. "Estamos diante de alta de papel-moeda", comunicou o presidente do NBCH, Juan Carlos Saife, em anúncio veiculado na imprensa local.

Para muitos economistas, se baixar os níveis de inflação pode requerer um ajuste mais complicado, acabar com a escassez de bilhetes é relativamente simples: bastaria emitir notas de 200 e até de 500 pesos. "Acho que é uma decisão que deverá ser tomada ainda em 2011", diz o economista Aldo Pignanelli, ex-presidente do BC. Segundo ele, nem os cofres dos bancos nem seus caixas eletrônicos têm espaço suficiente para armazenar uma grande quantidade de notas de menor valor. Por isso, muitos oferecem apenas bilhetes de 100 pesos, o que diminui a entrada em circulação de notas menores e agrava a escassez de troco. As notas de 10, 20 e 50 pesos, que há cinco anos correspondiam a 27% do papel-moeda em circulação, hoje representam só 22%.

Parlamentares da oposição já apresentaram projetos de lei para introduzir notas de 200, 500 e 1.000 pesos. A Associação de Bancos da Argentina (ABA) também encaminhou ao BC uma nota técnica defendendo a medida. Mas o governo se recusa a acatar a ideia, o que seria um reconhecimento de que a inflação realmente tem corroído o valor da desprestigiada efígie de Roca.