Título: Alternativas para enfrentar a excessiva liquidez global
Autor: Gonçalves, Fernando M.
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2011, Opinião, p. A12

O cenário econômico global atual é caracterizado por um grau de liquidez sem precedentes, resultado da prática de taxas de juros muito baixas em diversas economias, simultaneamente. Esta liquidez exacerbada vem complicando a condução da política econômica em várias economias emergentes, especialmente aquelas com taxas relativamente altas e com bons prognósticos de crescimento, como é o caso do Brasil, pois resultam em fluxos internacionais de capital significativos, que pressionam o câmbio e geram bolhas potenciais de ativos.

Com as economias centrais se recuperando de forma ainda incipiente, as condições de alta liquidez devem continuar por um período extenso e faz-se necessário pensar quais seriam as políticas adequadas para enfrentar esta situação.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) faz algumas sugestões em seu Relatório de Estabilidade Financeira Global de abril de 2010. No menu de políticas sugeridas pelo FMI figuram medidas de reforço à regulação prudencial, como aumentos em requerimentos de capital para certos tipos de crédito e elevação do compulsório sobre depósitos, ambas adotadas pelo Banco Central do Brasil (BC) em dezembro.

Além de reduzirem o risco de excessos no crédito, estas medidas guardam certa equivalência com ações convencionais de política monetária, como admitiu o BC ao adotá-las. Estudos mostram que, de fato, o compulsório é um dos determinantes do "spread" bancário no Brasil. Portanto, este instrumento teria a vantagem de elevar o juros ao tomador, restringindo crédito e crescimento, sem aumentar a taxa básica, evitando atrair mais capital. Seguindo o raciocínio, o relatório do FMI chega a afirmar que, no atual contexto, "aumentar a taxa de juros para manter a inflação sob controle pode ser contraprodutivo" e que "apertos monetários podem ser feitos via depósitos compulsórios..."

O uso de medidas prudenciais vem ocorrendo não apenas no Brasil. Na Turquia, por exemplo, o compulsório foi recentemente elevado ao mesmo tempo em que a taxa básica foi cortada, numa clara tentativa de explorar a equivalência entre estes instrumentos para desacelerar a economia sem estimular fluxos de capital. Trata-se de uma opção um tanto arriscada dada a incerteza elevada sobre o grau de equivalência entre aumentos dos juros e de compulsório.

Esta maneira de conduzir a política monetária se assemelha ao modelo utilizado há muito tempo pela China, em que mudanças no compulsório são mais comuns do que alterações nos juros. É verdade que o aumento recente da inflação na China levou o governo a aumentar pela segunda vez as taxas, mas antes disso o compulsório foi elevado três vezes. No entanto, o modelo chinês não decorre da necessidade de evitar fluxos de capital, até por que investidores estrangeiros são atraídos à China pelo crescimento expressivo e não pelo diferencial de juros. Com taxas de juros baixas o governo chinês tenta manter baixo o custo de financiamento das empresas estatais e do déficit do governo, mas isso diminui os retornos de depósitos bancários. Nesse sentido, alguns analistas argumentam que a decisão de subir juros decorre parcialmente da necessidade de recompor os rendimentos reais de depósitos bancários.

Mas quais seriam as desvantagens do uso corriqueiro de medidas macroprudenciais para fins de política monetária? Em primeiro lugar, enquanto operações de mercado aberto envolvem trocas voluntárias de ativos, com preços se ajustando para equilibrar o mercado, mudanças no compulsório requerem ajustes forçados no portfólio dos bancos, necessitando assim de aviso prévio.

Além disso, se o compulsório for mudado com frequência, bancos terão incentivos não somente a manter reservas em excesso mas também a criar passivos que não estejam sujeitos ao compulsório. Finalmente, e talvez mais importante, o elevado grau de incerteza quanto ao efeito de medidas macroprudenciais sobre a economia (fato reconhecido pelo BC) dificulta a coordenação de expectativas, um elemento crucial para o bom funcionamento do regime de metas de inflação. Desta forma, embora medidas macroprudenciais possam ser úteis no atual cenário, medidas convencionais de política monetária continuam tendo um papel crucial.

No caso brasileiro, o uso de medidas macroprudenciais ainda pode gerar ruídos adicionais. Enquanto muitos países separam a responsabilidade pela condução da política monetária da atividade de supervisão do sistema financeiro, no Brasil o BCB exerce ambas atribuições. O modelo brasileiro provou-se vantajoso durante a crise, mas não deixa claro se medidas macroprudenciais estão sendo utilizadas apenas por motivos prudenciais ou numa tentativa de substituir os instrumentos convencionais de política monetária.

Dados os limites das medidas macroprudenciais e de instrumentos convencionais de política monetária para enfrentar a alta liquidez global, quais seriam as alternativas? O relatório do FMI defende que intervenções no câmbio e controles de capital podem ter um papel relevante quando os fluxos de capital são temporários, mas adverte que fluxos mais duradouros tendem a refletir os fundamentos da economia. Nesta linha, o estudo sugere um ajuste fiscal se a economia estiver sobreaquecida. No caso do Brasil, esta é claramente a opção correta. A política fiscal brasileira é, sem dúvida, um dos fundamentos mais importantes por trás da persistência dos fluxos para o país. Um ajuste fiscal reduziria a necessidade de financiamento do governo, contribuindo para a redução de nossas taxas de juros, o que reduziria o incentivo a fluxos de capital e a pressão sobre o câmbio. Uma política fiscal mais austera, ao reduzir a demanda agregada, também contribuiria diretamente para mitigar os riscos de bolhas de ativos.

O BC sinalizou no Relatório de Inflação de dezembro que as medidas macroprudenciais recentemente adotadas serão seguidas por um novo ciclo de aumento da taxa básica para combater o sobreaquecimento da economia. Para diminuir o efeito da alta liquidez global sobre o país, é essencial que este novo ciclo seja auxiliado por um ajuste fiscal crível.

Fernando M. Gonçalves é economista-chefe da Ventor Investimentos.