Título: A presidenta: primeira obra da presidente
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2011, Política, p. A6

Uma vez posto que gramaticalmente tanto "presidente" como "presidenta" são aceitáveis para se referir à chefe (ou chefa?) de Estado Dilma Rousseff, cabe a reflexão de por que a escolha oficial por "presidenta", uma vez que não há gestos gratuitos na política. A questão simbólica sintetiza toda a estratégia de opinião pública de Dilma na reta final do governo do antecessor e em sua primeira semana presidencial.

Durante a campanha eleitoral, seja porque havia outra mulher como candidata à presidência, seja porque Lula era uma figura tão central e tão solar que obscurecia a personalidade de sua indicada, a questão de gênero não teve papel relevante. Por vezes a sensação é de que estava em jogo no Brasil uma espécie de terceiro mandato disfarçado para o presidente, como se Dilma não existisse.

Paradoxalmente, Dilma começou a construir a sua imagem após a sua eleição. É o que observa o cientista Antonio Lavareda, dono da empresa de consultoria MCI e atuante em campanhas do PSDB e do DEM nos anos 90 e filiado ao PSDB desde 2009.

"Foi só agora que a questão de gênero ganhou um significado especialíssimo, porque garante à Dilma um caráter único. Assim como nunca houve um presidente como Lula, ela , a "presidenta", também é diferente de tudo. Todos os demais foram apenas presidentes", observou Lavareda.

Mulher no comando pode mudar imaginário social

A busca de símbolos que reforçam a questão de gênero não se limitou à gramática, mas se estendeu ao entorno imediato de Dilma: do ministério com nove Pastas ocupadas por mulheres até às policiais que fazem sua segurança. Não é pouco o fato de Dilma ter destacado a sua condição na primeira frase de seu discurso inaugural: "Hoje será a primeira vez que a faixa presidencial cingirá o ombro de uma mulher. Sinto uma imensa honra por essa escolha do povo brasileiro e sei do significado histórico desta decisão", disse. Discorre sobre o tema nos quatro parágrafos seguintes e só então afirma que irá consolidar conquistas do antecessor.

"Depois de uma campanha fria, em que havia apenas um apelo racional para o voto em Dilma, que era a defesa da continuidade, era necessário agora colocar um pouco de emoção para gerar empatia com a opinião pública" , interpreta outro especialista em pesquisas, o cientista político Marcos Coimbra, do instituto Vox Populi.

Sobre o "significado histórico" da posse de uma presidente tudo indica que não será pequeno. Para feministas, poderá ter o poder de uma revolução nas mentes. "A presença dela na Presidência transforma a formação da representação social da mulher. O imaginário social muda", avalia a historiadora Tânia Navarro-Swain, professora aposentada da UnB que criou o primeiro mestrado e doutorado em estudos feministas do país. Segundo a professora, uma presidente desestabiliza a vinculação da mulher com o espaço privado da sociedade e do homem com o espaço público.

A professora relembra uma famosa frase de Simone de Beauvoir: "Não se nasce mulher, mas torna-se uma". "Existe uma construção social do ser, que no Brasil associa o feminino com a fragilidade, a inconsistência, a irracionalidade. Dilma quebra esta imagem. Até a voz dela é impositiva, de mando", disse. A historiadora não mostra o mesmo entusiasmo em relação ao ministério montado por ela. "São nove ministras, mas com exceção de Miriam Belchior, no Planejamento, as demais estão confinadas a áreas laterais da administração, usualmente identificadas com o feminismo, como o Desenvolvimento Social e a Cultura, ou então em Pastas totalmente irrelevantes, como Pesca". Neste ponto, aponta a professora, não há diferenças entre o governo de Dilma e o de seu antecessor. A própria Dilma foi a única ministra com poder efetivo na administração de Lula.

Descendo à questão pragmática da manutenção da popularidade, a perspectiva internacional mostra que o encantamento da opinião com a mandatária mulher dura pouco. Ministra da Defesa no governo de Ricardo Lagos, a chilena Michelle Bachelet se viu em meio a uma crise que comprometeu sua imagem poucos meses depois da posse, ao enfrentar protestos de estudantes secundaristas, em 2006. Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner começa a recuperar sua popularidade somente nas últimas semanas, após a comoção despertada pela morte do marido e antecessor. E é no momento em que começaram as dificuldades, que não tardará, que a questão de gênero pode deixar de ser um trunfo, ou até mesmo pesar contra. "Não há dúvida que um insucesso da sua administração será associado ao fato de ela ser mulher", opina Tânia Navarro.

César Felício é correspondente em Belo Horizonte. A titular da coluna, Maria Cristina Fernandes, está em férias