Título: Cadê o novo Cade?
Autor: Schmidt, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2011, Opinião, p. A10
Ser empresário no Brasil não é trivial. O país caiu na classificação do "Doing Business", documento elaborado anualmente pela International Finance Corporation (IFC), do Banco Mundial. Entre 183 economias, o Brasil posicionou-se em 127º lugar em 2010, caindo três posições em relação a 2009. O que isso tem a ver com o Projeto de Lei da Câmera de 2009 (PL 3937/04), que reforma o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC)? Muito, pois um dos complicadores para um saudável ambiente de negócios é a morosidade e incerteza na aplicação das regras de defesa da concorrência. Nesse sentido, a aprovação desse PL parece ser bom caminho a trilhar.
O objetivo principal desse projeto é adotar um sistema antitruste no Brasil cônsono com as melhores práticas internacionais: menos burocrático e, consequentemente, mais eficiente. Em linhas gerais, o projeto se sustenta em quatro pilares: 1) unifica os três órgãos que compõem o SBDC: a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), Secretaria de Direito Econômico (SDE) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), simplificando os trâmites burocráticos redundantes e maximizando o uso dos recursos escassos do governo, como fizeram mais recentemente Portugal (2004), Espanha (2005), Bélgica (2006) e França (2007); 2) cria uma carreira específica, formando especialistas no assunto; 3) define prazos máximos para as análises: as operações mais simples (90% dos casos) levariam no máximo 20 dias úteis para aprovação e as mais complicadas, de 120 a 270 (120 iniciais mais 90 a pedido do Cade mais 60 a pedido das empresas); e 4) aprimora e racionaliza procedimentos administrativos.
A discussão da reformulação do SBDC iniciou-se em 1999. Ainda que haja consenso de que o modelo vigente seja obsoleto, o projeto, depois de aprovado pelo Senado em 1/12/2010 com a inclusão de algumas emendas, ainda não o foi pela Câmara. Espera-se que ocorra em fevereiro deste ano.
Dentre as preocupações relevantes, destacam-se quatro: 1) o critério para notificação da operação ao SBDC; 2) a exigência da notificação prévia, dado o pequeno quadro de funcionários do SBDC; 3) a concentração excessiva de poder do superintendente-geral; 4) a possibilidade de conflito entre o superintendente-geral e os conselheiros do Cade.
No que toca à primeira preocupação, retirar o "threshold" atual de 20% de participação de mercado, deixando como critério apenas o faturamento, foi uma boa medida para pôr fim à subjetividade da definição de "mercado relevante" para fins de cálculo da fatia de mercado. Se o número escolhido (faturamento combinado pelas empresas de R$ 1 bilhão e R$ 40 milhões em vez dos atuais R$ 400 milhões e R$ 30 milhões) é inadequado, nunca se chegará a um consenso. Tiveram que escolher um número que fizesse sentido para o mercado brasileiro e este faz. Houve, portanto, uma indubitável melhora com esta alteração. Não só pela objetividade, mas pela celeridade que dará. Segundo estudo do Cade, dos últimos 150 negócios julgados, apenas 76 teriam de ser analisados, se esta regra estivesse valendo.
Com relação ao segundo ponto, a exigência da "notificação prévia" - prática internacionalmente adotada - foi imposta com intuito de incentivar as empresas a entregar de forma célere a documentação ao SBDC, ônus que atualmente recai sobre este, que muitas vezes é taxado como "ineficiente", enquanto a demora está, de fato, do outro lado do balcão. A preocupação, no entanto, não está na notificação prévia em si, mas em saber se haverá técnicos suficientes para analisar com qualidade todos os casos. Como no projeto está prevista a ampliação do quadro de funcionários do SBDC dos atuais 70 para 200, é pouco provável que a agilidade dos técnicos seja feita às custas de análises pouco rigorosas.
No que diz respeito ao terceiro tópico, o projeto estabelece salvaguardas suficientes para evitar um "superpoder" por parte do superintendente geral, deixando claro que, qualquer decisão que ele venha a tomar, será passível de revisão. Se ele encerrar um caso, por exemplo - para não sobrecarregar o Tribunal com ritos sumários e apuração de condutas irrelevantes - mas o Cade discordar, o relator pode avocá-lo pelo Tribunal.
No concernente ao quarto ponto, dentro dessa nova instituição haverá duas autoridades: uma responsável pela instrução do processo (superintendente-geral); e a outra pelo julgamento (Cade). Como ocorre atualmente, a palavra final continuará sendo do Tribunal (poder judicante), que é o Cade. Portanto, se hoje esse trâmite funciona bem, não há porque dar errado nesse novo modelo. Ainda que não haja hierarquia entre esses dois agentes, a probabilidade de conflito entre eles é baixa. Por outro lado, o benefício da medida em eliminar a duplicidade de tarefas dos dois órgãos instrutores é óbvio.
O fato é que, passada a fase crítica da crise mundial, pelo menos para o Brasil, mais fusões estão sendo esperadas. Perderá a corrida nas oportunidades de negócios o país que mais entraves tiver para a realização destas. Observa-se hoje no Brasil grande dicotomia entre o vigor da iniciativa privada e a gigantesca burocracia governamental. Abrir (e principalmente fechar) uma empresa no país, encarar a elevada e confusa carga tributária e se deparar com leis defasadas são apenas alguns exemplos de problemas que o governo tem que resolver.
A aprovação do projeto não é a solução para tudo, mas vai na direção correta, dando uma importante contribuição para colocar o país em uma trajetória mais coerente com seus novos desafios. Talvez, depois de mais de 10 anos "em estudo", o projeto pudesse contemplar uma "agência perfeita". Mas, como agradar gregos e troianos é impossível e como o custo da espera pela "perfeição" pode ser mais oneroso do que o benefício de tê-la ainda que de forma "imperfeita", a aprovação deste projeto ajudará o Brasil a ser mais eficiente.
Se o governo focar em tirar as pequenas (embora inúmeras) pedras existentes do caminho dos brasileiros, nossa economia crescerá de maneira mais harmoniosa e eficiente. Isso auxiliará o Brasil a ter uma melhor colocação no "Doing Business 2012".
Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt é doutora em Economia pela EPGE/FGV, professora do Ibmec e da FGV e organizadora e uma das autoras da coletânea de livros "Questões comentadas para o exame ANPEC" (Campus).