Título: Rio aposta na formação de uma nova polícia
Autor: Moura, Paola de
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2011, Especial, p. A12

O homem que controla 10.500 policiais civis do Estado do Rio de Janeiro está fazendo uma verdadeira revolução no modo de operar da instituição. O sistema de plantão, de um dia de trabalho por três de folga, está com os dias contados. "Polícia investigativa tem que estar todos os dias trabalhando. Não pode receber uma denúncia na segunda e começar a investigar na sexta", diz Allan Turnowsky, chefe da Polícia Civil.

Apesar de ser o responsável por investigar e capturar os principais criminosos no Estado, para ele a fuga dos bandidos do Alemão não é um sinal de derrota. "O mais importante da operação é tomar o território, não só pela ocupação em si, mas porque tiramos também o refúgio do bandido. Ele rouba na rua e não tem onde se esconder. Por isso, temos prendido bandidos especializadas em roubos de carros e joias nos últimos dias."

A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu em seu gabinete, no centro do Rio.

Valor: A Polícia Civil é a principal responsável por prender criminosos. O sr. não ficou frustrado quando viu os bandidos fugirem para o Alemão, na operação da Vila Cruzeiro, ou com a fuga pelo tubulação de águas fluviais, dias depois?

Allan Turnowsky: Quando há um enfrentamento e o bandido entende que pode trocar tiros, enfrentar o Estado de maneira igual e pode sair vitorioso de uma batalha, é porque, de alguma forma, o Estado falhou. Quando a gente entra no Alemão, na Vila Cruzeiro, e o bandido foge para outra localidade, por cima de um vale, de uma rua, não houve qualquer falha. O objetivo da entrada era a retomada daquele território.

Valor: Mas há quem diga que a fuga dos bandidos, principalmente do Alemão, teve ajuda da "banda podre" da polícia.

Turnowsky: Essas ações seriam muito pouco diferentes se a "banda podre" da polícia tivesse participado delas. Ela não tinha nenhum poder de atrapalhar.

Valor: Qual avaliação o sr. faz da operação nas duas favelas?

Turnowsky: Considero um sucesso. Já prendemos mais de 140 bandidos. Talvez os grandes líderes não estejam presos ainda, nomes como FB, Pezão... Essa doutrina de prender os grandes líderes, utilizada no passado, não deu resultado. O Pezão não é líder de nada, ele é mais um que estaria comandando num momento e, se morresse, entraria alguém no lugar dele.

Valor: A polícia não está atrás desses homens?

Turnowsky: Sim. Mas não podemos avaliar a operação pela prisão dos líderes. Estaríamos retroagindo a algo que não deu certo. Um exemplo: o Manteguinha, que foi preso dia 14 de dezembro, era um dos responsáveis pelos assaltos a joalherias do Rio. Foi preso porque não tinha mais o conforto de voltar para o território onde a polícia não podia entrar. O passo que foi dado é muito maior que a prisão de um líder. Acabamos com o território, acabamos com um negócio, nós tiramos armas, tiramos a droga, que seria o capital de giro, e tiramos o ponto comercial mais rentável. E o melhor, o ponto de conforto de se esconder. E ainda estamos sequestrando bens da família e das pessoas com quem eles lavavam dinheiro. Atacamos em todos os lados a organização criminosa.

Valor: Qual será o papel da Polícia Civil nesse novo cenário de segurança do Estado?

Turnowsky: Estamos tentando melhorar a nossa prestação de serviços. Estamos montando uma Polícia Civil que trabalha com exclusividade, e não mais em regime de plantão. Hoje, o regime é de 24 horas por 72 horas, ou seja, o policial trabalha na segunda e só volta na sexta. Nós montamos um programa chamado Dedic, Delegacia de Dedicação Integral ao Cidadão. O policial trabalha todos os dias como qualquer trabalhador. A Polícia Civil, diferentemente da PM, tem que trabalhar dessa forma. Se alguém roubou, é aí que começamos a investigar. Não posso registrar uma ocorrência na segunda e só voltar para investigar na sexta-feira. A polícia de investigação tem que trabalhar todos os dias.

Valor: Como é a mudança?

Turnowsky: Estou implantando o regime de exclusividade. Se precisasse de 40 policiais todo o dia numa delegacia, teria que contratar 160, em uma escala de 24 horas por 72 horas. Com o novo sistema, passo a ter 40 por dia. Com isso, se ia pagar mal para 160, pago bem para 40 e eles podem se dedicar exclusivamente. Com trabalho diário, posso dar cursos de qualificação. Como posso obrigar um policial que trabalha segunda e sexta-feira a assistir um curso de inglês?

Valor: Esse sistema já existe?

Turnowsky: Hoje tenho 13 delegacias no Dedic. Estão em toda a Zona Sul, Grande Tijuca e Zona Oeste da cidade.

Valor: Como foi a transição?

Turnowsky: Fiz concursos públicos e os novos policiais já entraram nesse sistema. Mas há também policiais antigos que aderiram. Tenho então 60% de novos policiais e 40% de antigos. São cerca de 1.100 policiais.

Valor: Eles já recebem mais?

Turnowsky: Não. A ideia é buscar uma gratificação por exclusividade.

Valor: Eles recebem ainda o mesmo salário que os outros, que ficaram no sistema antigo?

Turnowsky: Sim, numa faixa de R$ 3 mil iniciais.

Valor: Como o sr. vai convencer o Estado a pagar mais?

Turnowsky: Quando cheguei aqui, em 2002, a previsão era que a Polícia Civil precisasse de 32 mil homens. Com a mudança de escala, conseguimos que a necessidade caísse para 12 mil. Se enxuguei em dois terços a necessidade de pessoal, posso pagar mais. Hoje temos 10.500 homens.

Valor: Como o sr. consegue colocar os 40 homens para trabalhar todos os dias nas delegacias?

Turnowsky: Eu tinha dez homens por dia e não aumentei o meu espaço físico. Comprei viaturas descaracterizadas e laptops e criei o Dedic, que permite que o policial vá para a rua como se estivesse na delegacia. O cidadão que for assaltado ou roubado pode preencher o boletim de ocorrência no site do Dedic, na internet, e agendar a visita de dois policiais. Ele receberá a placa e o nome dos homens que vão à sua casa. Os policiais também se apresentarão ao porteiro, ao síndico e aos vizinhos. Assim a gente forma uma rede de confiança e se aproxima da sociedade. Teremos uma rede de colaboradores que passam a informação. E quanto mais informação, menos armas usaremos.

Valor: Todos os policiais civis trabalharão diariamente?

Turnowsky: Não. Porque não posso fechar a delegacia. Tenho que ter policiais no fim de semana, nos feriados e de noite.

Valor: Não houve divulgação para a população do Rio do novo sistema. Por quê?

Turnowsky: Divulgamos em clubes, sindicatos e associações. Estávamos em ano eleitoral e a legislação não permitia.

Valor: Posso chamar a polícia em qualquer endereço? No trabalho, por exemplo?

Turnowsky: Sim, desde que seja dentro da área do Dedic, porque é preciso que o carro e o laptop estejam disponíveis. A estrutura tem que estar montada. O cidadão também pode marcar hora para ir à delegacia. No balcão, a qualidade aumentou muito.

Valor: Quantas pessoas já foram atendidas?

Turnowsky: Em três meses, foram atendidos 1.100, aproximadamente, no sistema da internet.

Valor: O sr. se inspirou em alguma polícia que já atua assim?

Turnowsky: Não conheço outro caso no mundo em que você possa fazer o registro em casa de todos os delitos, com exceção de homicídio e roubo e furto de automóveis.

Valor: Por que não roubo e furto de automóveis?

Turnowsky: Achamos muito perigoso alguém colocar a placa do veículo de terceiros na rede.

Valor: Em quanto tempo isso estará montado no Estado?

Turnowsky: Até o fim do ano queremos estar com a metade da capital já funcionando, mais as divisões de homicídios. Da 1ª à 20ª DP, que incluem o Centro, as zonas Sul e Oeste e a Grande Tijuca. A partir de 2012, atingir Bonsucesso e área da Leopoldina. Em 2014, na Copa do Mundo, queremos ter toda a região metropolitana. Chegaremos à Baixada em 2016, junto com Niterói e São Gonçalo.

Valor: E o interior?

Turnowsky: Lá, muitas vezes, o policial mora em outra cidade ou até no Rio e vai trabalhar no plantão. Teremos que adaptar essa realidade ao sistema.

Valor: E qual será o salário final?

Turnowsky: Com a gratificação e o aumento que o governador já deu podemos até dobrar o salário. Quando você paga R$ 6 mil, que é mais ou menos quanto a Polícia Federal paga, você começa a atingir o interesse de outra classe social pelo concurso. Isso é fundamental para integrar à Policia Civil à camadas da sociedade que são formadoras de opinião. Hoje, o nosso concurso já atrai uma classe média alta, com mestrado e doutorado, mas não consigo mantê-los porque eles fazem outros concursos que pagam melhor.

Valor: O que o sr. fará com o policial que faz bico e não quiser abrir mão da escala de plantão?

Turnowsky: Não posso obrigar o policial antigo a trabalhar no projeto. O novo já entra nesse horário. Quando eu começar a pagar, o próprio policial vai pedir para vir, porque ele aprendeu que, quando envelhece, a iniciativa privada já não necessita mais dele. O bico não tem futuro.

Valor: A gratificação aos policiais integrais será de quanto?

Turnowsky: Estamos estudando com a Secretaria de Fazenda e de Planejamento. Minha argumentação é que, quando eles vierem a se aposentar, não terei 30 mil policiais pesando na folha e sim 10 mil, no futuro. O maior problema do mundo em termos de economia é aposentadoria, é o envelhecimento. Estou projetando um número menor de aposentados. Por isso, a gente gostaria de pagar R$ 1.200. Só para ter uma ideia, o bico paga hoje R$ 100 por dia.

Valor: Quanto custa montar uma delegacia de Dedic?

Turnowsky: Custa R$ 550 mil cada unidade, em média, levando em conta carros, laptops e softwares. Nós desenvolvemos o sistema. Não terceirizamos nada. É um projeto estruturante. Você não vai mais precisar ter um sistema específico para a Olimpíada. Se for fazer só para os Jogos, compro ônibus, aumento o efetivo e acabou.

Valor: Mas e o resto? E a qualidade de investigação?

Turnowsky: A nossa divisão de homicídios, hoje, não perde em nada para os maiores centros de investigação. Nós temos peritos do IFP [Instituto Félix Pacheco], que colhem as digitais, temos peritos legistas no novo Instituto Médico Legal. Nós recebemos todos os corpos das tragédias de Angra e de Niterói. Você pode ter ouvido reclamações de todos os tipos, mas não de que houve problemas no IML. Também estamos com um projeto para o ICCE [Instituto de Criminalística Carlos Éboli] de polícia criminal. Fomos a Israel e a Nova York e vimos o que há de melhor. O foco vai ser evidência criminal em local de crime. Vamos buscar um cabelo, uma digital, que ajude a polícia a esclarecer os crimes. A obra será ao lado do IML e o Estado já conseguiu R$ 160 milhões do BNDES para a construção. Vamos fazer a Cidade da Polícia, um centro em Manguinhos para treinar o policial de maneira mais refinada.

Valor: Vai chegar um dia em que o cidadão assaltado que der queixa verá o trombadinha preso e terá satisfação da polícia?

Turnowsky: A ideia é essa. Por muito tempo, no Rio, as delegacias especializadas supriram as necessidades das delegacias de bairro. As delegacias de bairro foram enxugadas e todo o efetivo foi colocado em especializadas: automóveis, roubos e furtos, anti-sequestro e entorpecentes. O roubo de carros do bairro era tratado pela DRFA [Delegacia de Roubos e Furtos de Autos]. É a delegacia do bairro que vai lhe atender, que vai ter a informação de quem é o pivete e quem é o guardador. A especializada tem que ser para grandes investigações: contrabando de armas ou quadrilhas de carros.

Valor: A população também quer ver a "banda podre" da polícia na cadeia. Quando isso vai acontecer?

Turnowsky: Sem extirpar a "banda podre" da instituição, a Polícia Civil vai estagnar. Internamente estamos iniciando um processo de limpeza dos quadros. Começa na prestação de serviço melhor. Quando você começa a ser bem tratado no bairro, você não quer perder aquele orgulho e automaticamente já diminui as más condutas. Mas existem os policiais viciados. Esse já é afastado dos novos projetos e é investigado. Ele tem certeza de que, se for pego, não haverá qualquer tipo de benevolência. Não vai ter impunidade.

Valor: Mas e o que já está acontecendo?

Turnowsky: Estamos colocando a Corregedoria para trabalhar junto com o setor de investigação e o setor de lavagem de dinheiro para investigar bens de policiais. Se um policial passar com um carrão, vai ter que justificar. Vamos nos antecipar percebendo sinais exteriores de riqueza, ou ainda no uso de laranjas para aumento desproporcional de patrimônio.

Valor: No imaginário da população, existem quadrilhas na polícia. Elas existem de fato?

Turnowsky: Essas quadrilhas existem e serão presas. São principalmente envolvidas com milícias e com a máfia de caça-níqueis. Só na nossa gestão prendemos mais de 500 milicianos, sendo 70% nos últimos dois anos. Em 2010, foram aprendidos 9 mil caça-níqueis.

Valor: O sr. acredita que será responsável pela transformação da Polícia Civil?

Turnowsky: Tenho um prazo. Não é justo colocar o policial trabalhando diariamente com o mesmo salário. Se não conseguir aumentar, vai haver muita indignação. Estou confiante que esse projeto não terá retrocesso. Se for analisar como empresa privada, diminuí custo e efetivo. Quando assumi a chefia da Polícia Civil, disseram: "Faça gestão privada dos recursos públicos". É isso que a gente está fazendo: reduzindo custos e melhorando a prestação de serviços.