Título: Respostas à nova alta dos alimentos
Autor: Graziano da Silva , José
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2011, Opinião, p. A11

Bastaram 30 meses para o Índice de Preços de Alimentos medido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) bater novo recorde. À máxima de 214 pontos na crise de junho de 2008, sucedeu-se o recorde de 215, em dezembro de 2010.

Embora os números sejam similares, há diferenças que explicam um sugestivo paradoxo: à simetria dos indicadores sucede-se uma assimetria dos desdobramentos sociais. A alta desta vez é puxada pelas oleaginosas e pelo açúcar, que pouco havia subido em 2008. Mas os cereais - grupo de alimentos mais importante para a segurança alimentar - exibem trajetória mais comedida, principalmente o arroz, embora tenha aumentado 39% em 2010.

Outro diferencial importante é que o novo ciclo altista teve início após colheitas promissoras em algumas das regiões mais prejudicadas em 2008. As boas safras na África subsaariana e na América Latina, por exemplo, permitiram repor estoques. Na maioria dos países em desenvolvimento, a pressão ainda não chegou ao mercado interno.

Eventual disparada do petróleo poderá precipitar esse quadro. A cotação atual, porém, US$ 88 o barril, é substancialmente inferior ao pico de 11 de junho de 2008, de US$ 147. Também mais comedidos se mostram os insumos agrícolas, com preços estáveis.

Ainda assim, o quadro crítico do abastecimento mostra que as medidas tomadas desde 2008 não foram suficientes para afastar o espectro de uma nova rodada de incertezas.

A volatilidade nos preços é um elo comum entre 2008 e 2011. Em 2006, o Índice de Preços de Alimentos da FAO estava em 122 pontos. Subiu para 214 pontos em junho de 2008; caiu para 140 em março de 2009. Bateu em 215 em dezembro de 2010.

A aposta dos anos 90 na autorregulação dos mercados, em detrimento dos estoques públicos de alimentos, revelou-se um equívoco fartamente documentado nos distúrbios gerados pela escassez e a alta dos preços em 2008.

Eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes, desguarnecem o cálculo econômico dos produtores e fertilizam o repasto da especulação. Pesquisadores prognosticam que o fenômeno La Niña deste ano - que estreita e às vezes suprime a estação chuvosa em diferentes regiões do planeta - será um dos mais intensos das últimas cinco décadas.

Não por acaso, o ciclo de alta começou com a seca na Rússia e afetou principalmente a produção de trigo. Ao espessar a neblina entre o custo presente e o retorno futuro, a incerteza inibe o plantio e resseca a oferta. A produtividade é duplamente atingida, pelo revés climático e pela retração nos gastos com insumos de retorno imponderável.

A integração entre os mercados de energia e de alimentos acentua os passos desse minueto de desequilíbrios. Não é o caso do etanol brasileiro, mas em alguns países, a produção de biocombustíveis já pressiona a cesta básica: 30% da produção de milho americana destina-se às usinas de álcool.

Há antídotos à nova face da insegurança alimentar em nosso tempo. Volatilidade guarda relação inversa, por exemplo, com reservas de alimentos. Quanto maior a disponibilidade de estoques, menor a probabilidade de colapso no abastecimento, maior a estabilidade dos mercados. Há, ademais, crescente consenso de que a especulação financeira amplifica e polariza o gradiente das cotações, que se alimentam da opacidade climática e da anemia das reservas estratégicas.

A FAO preconiza quatro linhas de ação diante desse novo cenário.

Em primeiro lugar, restabelecer a prioridade ao desenvolvimento agrícola. A fome no século XXI configura, sobretudo, um problema de acesso, mas a oferta terá que ser ampliada ali onde a carência é mais forte: 75% dos famintos concentra-se nas áreas rurais dos países pobres e em desenvolvimento. Investimentos em tecnologia adaptada a essas realidades constituem a agenda inadiável da cooperação entre governos ativos e ajuda internacional consequente.

Rever barreiras protecionistas e tarifárias que impedem o acesso dos países em desenvolvimento aos mercados ricos é uma providencia complementar a essa na medida em que adiciona maior estabilidade aos preços, com o reforço da oferta.

A aposta dos anos 90 na autorregulação dos mercados, em detrimentos dos estoques públicos de alimentos, revelou-se um equívoco fartamente documentado nos distúrbios gerados pela escassez e a alta dos preços em 2008. Ademais do reforço da oferta e da recomposição dos estoques, as incertezas devem ser enfrentadas com maior regulação da variável financeira que passou a interferir na formação dos preços, a partir dos mercados futuros.

A financeirização não é a causa original das flutuações atuais. Tampouco o seu controle resolverá certos desafios, como o protecionismo europeu e americano. Mas ela veio acentuar extremos de um gradiente que já preocupava Keynes, em 1926, e cuja mitigação, segundo o economista inglês, deveria ser objeto de um fundo internacional capaz de intervir nos mercados. Não para substituí-los. Mas para suavizar curvas pronunciadas decorrentes, entre outros fatores, da inapetência privada para carregar estoques de interesse público. Valorizações agrícolas equiparáveis às aplicações financeiras mais rentáveis, como tem ocorrido, sugerem que as preocupações de Keynes guardam sintonia com a nova face da insegurança alimentar em nosso tempo.