Título: Linhas de pobreza
Autor: Veiga, José Eli da
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2011, Opinião, p. A11

Estamos à beira de tomar uma decisão política de incalculável envergadura histórica: convencionar a "linha da pobreza" do Brasil. O governo já dispõe de razoável cadastro das famílias que estão em situações de maior precariedade, base suficiente à execução da proposta de uma "terceira geração de políticas sociais", lançada pela candidatura Marina Silva. Mas é claro que tais políticas serão muito mais eficazes e transparentes se contarem com legítima definição da pobreza para efeito de reconhecimento social, além de administrativo.

Justamente por isso é preciso evitar que esse patamar venha a ser determinado somente pela insuficiência de renda: alguma fração do salário mínimo, da renda média, ou da renda mediana, por exemplo. Pois é pobre mesmo quem tenha boa renda se estiver impedido de convertê-la em vida decente por falta de saúde, de educação e de muitas outras carências, principalmente habitacionais.

Nos países mais desenvolvidos, pioneiros na adoção de linhas de pobreza oficiais, essa visão mais abrangente sofreu duríssima e prolongada resistência, pois uniu a esquerda doutrinária ao cerne da direita. Todavia, é preciso que a presidente Dilma fique sabendo que esse bloqueio está com os dias contados.

Nos EUA estão em consulta pública os critérios que definirão a "Supplemental Poverty Measure" (SPM), a entrar em vigor no fim do ano. É uma abordagem estrutural da delimitação da pobreza, que será acrescentada à linha restrita à renda monetária, usada há meio século: o triplo do preço da cesta de alimentos que garante a dieta oficialmente recomendada. Essa inovação do presidente Obama segue as recomendações de seminal avaliação feita há mais de 15 anos pelo National Research Council, da National Academy of Sciences: "Measuring Poverty: A New Approach" (1995).

É pobre quem tem renda, mas não tem assistência à saúde e acesso à educação e à habitação

Na União Europeia (UE), com linha de pobreza estabelecida em 60% da renda mediana nacional, algo bem parecido também está em processo de legitimação. Uma perspectiva "multidimensional", que procura acrescentar uma nova medida da "pobreza de condições de vida" à velha métrica da "pobreza monetária". Iniciativa prevista na agenda adotada em 2000 pelo Conselho da Europa, mais conhecida por "Estratégia de Lisboa".

Nos dois casos, a maior dificuldade está na construção dos indicadores não monetários da pobreza, pois suas variáveis podem facilmente atingir duas dezenas. Entre a falta de acesso a bens duráveis hoje essenciais (máquina de lavar, telefone, televisão) e a oportunidade de ter férias fora do domicílio ao menos uma semana por ano, passando pela qualidade da moradia (segurança de aquecimento no inverno, por exemplo), quais seriam os critérios mais apropriados?

A lista inicial testada pela UE tinha 14 itens: cinco de vulnerabilidade material, quatro de acesso a bens duráveis e cinco de qualidade da moradia. Foi reduzida para nove, que geraram dois indicadores: um exclusivo para a situação habitacional, e outro que agregou as duas primeiras dimensões.

Os resultados dos testes deixaram bem claro que nos países menos desenvolvidos, como os do Leste, a "pobreza de condições de vida" é muito mais relevante que a "pobreza de renda" (ou "monetária"), ao contrário do que tende a ocorrer com os mais desenvolvidos. Situação também constatada nas comparações entre estados americanos.

Essa é a lição mais importante a ser tirada da história internacional das linhas de pobreza. No Brasil, algo como meio salário mínimo per capita é uma renda monetária considerada até razoável em remotos municípios rurais do Nordeste e do Norte. Mesmo fora dessas duas regiões é comum que sitiantes com esse nível de renda monetária sejam muito menos pobres que favelados que ganhem o triplo. E sob o prisma das condições de vida - particularmente de qualidade da moradia - o mais difícil será reduzir a pobreza nas microrregiões ambivalentes, nem realmente urbanizadas, nem efetivamente rurais.

É inaceitável, portanto, uma única linha de pobreza monetária para todo o território nacional, dada diversidade dos custos de vida. E se também for adotada uma linha suplementar, não será necessário ir além dos critérios já utilizados para determinar a "adequação" da moradia, pois um deles é ter acesso a rede de saneamento ambiental.

Em suma, deve ser considerada pobre qualquer família que viva em condições insalubres (seja qual for sua renda), ou que ganhe menos do que 60% da renda familiar monetária mediana de sua mesorregião. Tal convenção só melhoraria com a inclusão de critérios de acesso a outros bens públicos (principalmente educação e saúde), mas que certamente será suficiente até que se alcance a universalização do saneamento ambiental.

Claro, a adoção dessa dupla exigência certamente tornará bem mais cara e demorada a execução de qualquer programa de minimização da pobreza. Mas nada poderia ser mais escandaloso do que o avesso: arranjar uma linha de pobreza de renda monetária especialmente talhada para tornar factível o mito de sua "erradicação".