Título: Teste para a Unasul
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 29/07/2010, Mundo, p. 28

Bloco regional se reúne na tentativa de reaproximar os vizinhos, rompidos por causa de denúncias sobre a presença da guerrilha das Farc em território venezuelano. Brasil propõe vigilância conjunta na fronteira e tenta dispensar intervenção de Washington na crise

Os chanceleres dos países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) reúnem-se hoje em Quito, no Equador, para tentar dar um fim à tensão entre dois de seus parceiros. Na semana passada, a Venezuela rompeu as relações com a Colômbia depois de o presidente Álvaro Uribe, que deixa o poder no próximo dia 7, acusar o governo de Hugo Chávez de abrigar em seu território guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A posição brasileira, adiantada ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por seu assessor internacional, Marco Aurélio Garcia, será convencer os dois vizinhos a monitorarem a fronteira em conjunto, como já é feito pelos colombianos com o Equador. Eu pretendo conversar muito com o Chávez, conversar muito com o (Juan Manuel) Santos (sucessor de Uribe), porque o tempo é de paz, afirmou Lula aos jornalistas ao receber em Brasília o colega nicaraguense, Daniel Ortega.

Uribe apresentou a denúncia formalmente à Organização dos Estados Americanos (OEA), onde conta com o peso dos Estados Unidos, aliados fundamentais no combate às Farc e nos atritos com Hugo Chávez, mas o Brasil tenta promover uma resposta de cunho político no âmbito da Unasul. Os dois países vão ter a possibilidade de ter uma conversa, que deveria ser direta e discreta. Uma conversa pública não funciona muito, porque há recriminações de ambas as partes, que só fazem alimentar outras. Tanto da parte da Venezuela quanto da Colômbia, a disposição para o acordo é maior que para o desacordo, considera Marco Aurélio. E o conjunto da região está muito interessado em que o acordo se faça.

Uma vez aberto o caminho para a conciliação, o governo brasileiro pensa em propor a vigilância conjunta das fronteiras. Isso, de certa forma, neutralizaria uma série de ações que complicam a vida dos países: Farc, Exército de Libertação Nacional (ELN), paramilitares, narcotraficantes, disse Marco Aurélio. Experiência semelhante foi bem-sucedida com o Equador, onde a situação ficou muito mais crítica em março de 2008, depois que os militares colombianos bombardearam um acampamento das Farc em território equatoriano. Se lá funcionou, acho que também pode funcionar para evitar faíscas (entre Venezuela e Colômbia), destacou.

O visitante nicaraguense opinou que seria uma guerra terrível para a América Latina, e se demonstrou esperançoso com a mediação da Unasul. Entretanto, o otimismo de Lula e Ortega não é compartilhado pelo ex-chanceler equatoriano Marcelo Fernández de Córdoba. Para ele, a reunião de hoje é inútil no que diz respeito a soluções e se presta apenas para Chávez fazer um pouco de propaganda e a Colômbia manter sua postura, como disse à agência Reuters. Não sairá mais que uma exaltação para que os dois países resolvam as disputas.

Loucura Se, por um lado, Uribe insiste na participação internacional para analisar as denúncias que fez perante a OEA, ele rejeitou a ideia de envolver atores internacionais em um processo de paz com as Farc, pois entende que isso daria oxigênio aos guerrilheiros. Cuidado ao afrouxar a nuca da cobra, porque ela está meio adormecida, mas se afrouxamos ela volta a respirar, ilustrou, falando em um ato de despedida no Ministério da Defesa. Só exigimos da comunidade internacional que cumpra as normas internacionais que nós cumprimos, que são as de não dar abrigo ao terrorismo e combatê-lo, cobrou Uribe.

O governo de Caracas recusou, até aqui, a proposta colombiana de criar comissões de verificação sobre a presença das Farc no território venezuelano. Depois de fazer uma turnê por vários países sul-americanos, entre eles o Brasil, o chanceler Nicolas Maduro garantiu que seu objetivo foi construir a paz. Ele prometeu que seu país apresentará um plano de paz para a Colômbia, e fez um apelo a homens e mulheres honestos do país vizinho para que detenham a loucura do governo Uribe e as agressões contra a Venezuela.

Quem atira a primeira pedra? O presidente brasileiro ficou numa saia justa no fim da visita de Ortega. Os jornalistas perguntaram se ele telefonaria para o colega Mahmud Ahmadinejad para pedir pela vida da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento sob acusação de adultério. Lula ressaltou que já pediu por uma francesa e por americanos no Irã, assim como por brasileiros na Indonésia e na Síria, mas ponderou que um presidente da República não pode ficar na internet atendendo a todo pedido que alguém faz de outro país. As pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis delas para atender ao pedido de presidentes, daqui a pouco vira uma avacalhação. Eu, sinceramente, não acho que nenhuma mulher deveria ser apedrejada por conta de... sabe, traição, respondeu.

Solidariedade com Zelaya

Defender uma repatriação segura para o ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya, deposto por um golpe militar, em junho de 2009, continua sendo um tema de honra do governo brasileiro em relação à América Central. Durante a visita do presidente nicaraguense, Daniel Ortega, o assunto ocupou um lugar de destaque. Não podemos admitir que o golpe de 28 de junho de 2009 se torne incentivo a novas aventuras antidemocráticas, disse Lula, na presença de Ortega. Um golpe que chegou quando menos se esperava, quando se pensava que os golpes haviam desaparecido para sempre da região. Uma enorme ferida no processo de integração centro-americano, concordou Ortega, que fez um longo discurso antes do almoço oferecido no Itamaraty.

Ambos os presidentes afirmaram que, até o momento, não há condições de reconhecer o governo do presidente hondurenho Porfirio Lobo, vencedor da polêmica eleição realizada em novembro último, sem reconhecimento formal da OEA. Para Lula e Ortega, Lobo deve criar condições para que Zelaya regresse ao país. No entanto, nenhum dos dois comentou o fato de os países do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica) com a exceção da Nicarágua terem decidido normalizar as relações com Honduras na terça-feira passada. Os países centro-americanos também pediram que o vizinho seja readmitido na OEA.

No contexto doméstico, Ortega vive uma polêmica semelhante à de Zelaya: ele defende que é o povo quem deve decidir, nas eleições de novembro de 2011, sobre a reeleição presidencial, proibida pela Constituição nicaraguense. A medida foi autorizada por sentença judicial rejeitada por 70% da população, segundo uma recente pesquisa de opinião. Ortega, eleito em 2006, tem mandato até 2011.

Além de discutir o panorama centro-americano e a integração com organismos como a Unasul e o Mercosul, Lula e Ortega também avaliaram o andamento de programas de cooperação bilateral em agricultura, habitação popular, saúde, educação, energia e combate à fome. (VV)