Título: Na Argentina, Dilma exalta confiança mútua
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2011, Brasil, p. A3

Em sua primeira agenda internacional no cargo, a presidente Dilma Rousseff despertou euforia nas autoridades da Argentina e em organizações de direitos humanos do país, que se encontraram ontem com ela na Casa Rosada. Sem quebrar o protocolo em nenhum momento, mas dizendo estar "emocionada" depois de reunião particular de uma hora e quarenta minutos com a colega Cristina Kirchner, Dilma mostrou-se bastante à vontade e qualificou Brasil e Argentina de "países estratégicos" em um "mundo de mudanças".

A sintonia entre as duas pareceu tão forte que o almoço oferecido à delegação brasileira no Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina, começou quase às 16h, com duas horas de atraso e para o desespero de alguns ministros esfomeados, já que Cristina estendeu sua conversa com Dilma muito além do previsto e fez questão de mostrar a ela galerias instaladas na Casa Rosada com homenagens a próceres latino-americanos, mulheres, cientistas e escritores.

"Nosso povo e nosso governo dão um valor muito especial a esse gesto", afirmou Cristina, em rápida declaração à imprensa e ao lado de Dilma, referindo-se à decisão de fazer sua primeira viagem no cargo a Buenos Aires. "Para nós, é uma altíssima honra e a reafirmação de um compromisso iniciado por outros presidentes que nos precederam."

Dilma enfatizou a ascensão das mulheres na política dos dois países e fez três referências diretas ao ex-presidente Néstor Kirchner, morto em outubro, vítima de um ataque cardíaco fulminante. "Ele deixou um legado extraordinário não só para a Argentina, mas para toda a América Latina. Continuará sendo uma inspiração para nós", disse Dilma, que puxou ela mesma os aplausos da plateia de ministros. Depois, concluiu: "Estamos um pouco emocionadas, como é a primeira vez, estamos emocionadas. Vocês entendam isso."

Dilma chegou a Buenos Aires perto de 11h30 e, para quebrar o gelo na visita a uma Casa Rosada decorada com inúmeras bandeiras dos dois países, fez comentários elogiosos sobre os vestidos das ministras Débora Giorgi (Indústria) e Nilda Garré (Defesa) quando foi apresentada formalmente a Cristina - uma entusiasta de temas relacionados à moda. Foi um sinal inequívoco de que os tempos de Kirchner e Lula, dois fanáticos por futebol, que cultivavam a paixão pelo Racing Club e pelo Corinthians, haviam ficado para trás.

Depois do encontro com Cristina, Dilma atendeu a um pedido das organizações de defesa dos direitos humanos e reuniu-se com as mães e as avós da Praça de Maio, que encabeçam os movimentos por punições aos responsáveis por torturas e crimes contra a humanidade praticados durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Estela Carlotto, líder da Associação de Avós das Praças de Maio, chegou a sugerir que o Brasil se inspire na política adotada na Argentina de julgar e levar à prisão seus ex-torturadores. "Toda essa memória que temos em comum pode plasmar-se em estratégias para essa nova gestão", disse Estela a jornalistas brasileiros, pouco antes de conversar com Dilma. "A questão brasileira talvez não abarque o sequestro sistemático de bebês, mas a busca de vítimas."

A associação liderada por Estela Carlotto já identificou mais de cem filhos de desaparecidos que foram entregues, ainda recém-nascidos, para serem cuidados por militares ou pessoas afins à ditadura. Ela chamou Dilma, uma ex-guerrilheira torturada, de "mulher forte" e "muito querida". A presidente, por sua vez, comentou que o encontro com as mães e as avós foi "uma manifestação de imenso carinho".

Dilma e Cristina assinaram um total de 15 declarações, memorandos de entendimentos e acordos. Os documentos envolvem a cooperação na área habitacional, a promoção conjunta de produtos brasileiros e argentinos em terceiros mercados e a criação de um foro empresarial Brasil-Argentina, à semelhança do que já existe, em caráter até agora inédito, com os Estados Unidos. A maioria dos convênios, no entanto, diz respeito a temas que já constavam da agenda bilateral e tiveram apenas uma "recauchutagem" para turbinar a reunião das duas.

São acordos, entre outros, para o desenho conjunto de reatores atômicos para a produção de fármacos e para a construção das usinas hidrelétricas binacionais de Garabi e Panambi, no rio Uruguai. Elas deverão gerar 2,2 mil megawatts (MW) e começarão a ser construídas entre 2013 e 2014, segundo Dilma. Ela e Cristina também assinaram convênios sobre biocombustíveis e para a construção de uma ponte fronteiriça. "No passado, Brasil e Argentina foram colocados separadamente, por vários setores", disse Dilma, minutos antes de embarcar no avião presidencial, rumo a Brasília. "Estabelecemos parcerias e algo fundamental na relação de pessoas e das nações: confiança mútua."