Título: Ingovernável orçamento americano
Autor: Sachs, Jeffrey D.
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2011, Opinião, p. A15

O coração de qualquer governo está em seu orçamento. Os políticos podem fazer promessas sem fim, mas se o orçamento não fecha, a política é pouco mais do que meras palavras.

Os EUA estão agora nessa sinuca. Em seu recente discurso sobre O Estado da União, o presidente Barack Obama pintou um quadro convincente de um governo moderno no século XXI. Seus adversários do Partido Republicano queixaram-se de que as propostas de Obama estourariam o orçamento. Mas a verdade é que os dois partidos estão se escondendo da realidade: sem mais impostos, não será possível manter uma economia americana moderna e competitiva.

Obama acertadamente enfatizou que a competitividade no mundo atual depende de uma força de trabalho instruída e infraestrutura moderna. Isso é verdade para qualquer país, porém especialmente relevante para os países ricos. Os EUA e a Europa estão em concorrência direta com o Brasil, a China, a Índia e outras economias emergentes, onde os níveis salariais são, por vezes, um quarto dos praticados em países de alta renda (se não ainda menores). Os EUA e a Europa manterão seu elevado padrão de vida apenas se basearem sua competitividade em capacitação avançada, tecnologias de ponta e infraestrutura moderna.

É por isso que Obama defendeu um aumento do investimento público americano em três áreas: educação, ciência e tecnologia e infraestrutura (inclusive internet de banda larga, transporte ferroviário rápido, e energia limpa). Ele expôs uma visão de crescimento futuro segundo a qual investimentos públicos e privados seriam complementares, pilares apoiando-se mutuamente.

As consequências econômicas e sociais de uma geração de cortes de impostos são claras. Os EUA estão perdendo competitividade internacional, negligenciando seus pobres e legando uma montanha de endividamento para seus jovens.

Obama enfatizou estes temas por boa razão. O desemprego nos EUA está agora em torno de 10% da força de trabalho, em parte porque mais novos empregos estão sendo criados nas economias emergentes e muitos dos postos de trabalho que estão agora sendo criados nos EUA pagam menos do que no passado, devido à maior concorrência mundial. A menos que os EUA ampliem seus investimentos em educação, ciência, tecnologia e infraestrutura, essas tendências negativas persistirão.

Mas a mensagem de Obama perdeu contato com a realidade quando ele focou sua atenção no déficit orçamentário. Reconhecendo que as recentes políticas fiscais colocaram os EUA numa trajetória de crescimento insustentável da dívida pública, Obama disse que caminhar para o equilíbrio do orçamento é agora essencial para a estabilidade fiscal. Por isso, ele pediu um congelamento de cinco anos no que governo dos EUA denomina gastos civis facultativos.

O problema é que mais da metade dessas despesas destinam-se a educação, ciência e tecnologia e infraestrutura - as áreas que, Obama acabara de argumentar, deveriam ser reforçadas. Depois de falar aos americanos sobre a importância dos investimentos governamentais para um crescimento moderno, ele prometeu congelar os gastos durante os próximos cinco anos!

Políticos frequentemente mudam sua mensagem de um discurso para o seguinte, mas raramente contradizem-se tão flagrantemente num mesmo pronunciamento. Essa contradição ressalta a triste e autodestrutiva natureza das políticas orçamentárias americanas dos últimos 25 anos e, muito provavelmente, dos próximos anos. Por um lado, o governo americano precisa investir mais para estimular a competitividade econômica. Por outro lado, os impostos, nos EUA, são cronicamente insuficientes para suportar o nível de investimento público necessário.

A realidade fiscal dos americanos ficou dolorosamente evidente dois dias após o discurso de Obama, em um novo estudo do Birô de Orçamento do Congresso (BOC), que revela que o déficit orçamentário deste ano chegará a quase US$ 1,5 trilhão - montante quase inimaginável para uma economia como a americana. Representando quase 10% do PIB, o déficit está resultando numa montanha de endividamento que ameaça o futuro dos EUA.

O estudo do BOC também deixou claro que o acordo de redução de impostos firmado em dezembro entre Obama e a oposição republicana alargou drasticamente o déficit orçamentário. Vários cortes criados por George W Bush estavam previstos para expirar no fim de 2010. Obama e os republicanos acordaram em manter os cortes nos impostos durante, pelo menos, dois anos, reduzindo, assim, em US$ 350 bilhões as receitas fiscais deste ano e novamente em 2012. Os cortes de impostos que beneficiam os americanos mais ricos faziam parte do pacote.

A verdade sobre a política americana, hoje, é simples. O cerne da política de governo, para os líderes dos dois partidos políticos, é o corte de impostos, especialmente os pagos pelos ricos. Ambos os partidos políticos, e a Casa Branca, preferem cortar impostos do que gastar mais em educação, ciência e tecnologia e infraestrutura. E a explicação é simples: as famílias mais ricas financiam as campanhas políticas. Os dois partidos, portanto, cuidam de seus desejos.

Em consequência, a receita fiscal total americana, como proporção da renda nacional, é das mais baixas entre todos os países de alta renda, de aproximadamente 30%, em comparação com cerca de 40% na Europa. Mas 30% do PIB não são suficientes para cobrir as necessidades de saúde, educação, ciência e tecnologia, previdência social, infraestrutura e outras responsabilidades governamentais vitais.

Uma área do orçamento poderia e deveria ser enxugada: os gastos militares. Porém, mesmo que o exorbitante orçamento militar americano fosse cortado abruptamente (e os políticos de ambos os partidos estão resistindo a isso), novos impostos continuariam sendo necessários.

As consequências econômicas e sociais de uma geração de cortes de impostos são claras. Os EUA estão perdendo sua competitividade internacional, negligenciando seus pobres - uma em cada cinco crianças americanas está aprisonada na pobreza - e legando uma montanha de endividamento para seus jovens. A despeito de toda a retórica elevada do governo Obama, suas propostas de política fiscal não fazem nenhuma tentativa séria de resolver esses problemas. Tal objetivo exigiria mais impostos, e isso - como George H W Bush aprendeu em 1992 - não é maneira de conseguir ser reeleito.

Jeffrey D Sachs é professor de Economia e diretor do Instituto Terra na Universidade Colúmbia. Ele também é conselheiro especial do secretário-geral da ONU para as Metas do Milênio.