Título: Apesar dos protestos, governo de Mubarak ainda dá as cartas
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Fonte: Valor Econômico, 09/02/2011, Opinião, p. A10

Passados 15 dias de fúria popular no Egito, o ditador Hosni Mubarak consegue se manter no poder e, a menos que os protestos ganhem nova força, ele poderá encerrar seu mandato em setembro. A semi-insurreição do povo egípcio abalou toda a estrutura política construída pela autocracia de Mubarak em 30 anos, mas ainda não foi forte o suficiente para desmantelá-la. Todas as forças que apoiam o status quo se reagruparam para, em primeiro lugar, tentar vencer a rebeldia pelo cansaço e, depois, para fazer as menores e mais seguras concessões possíveis, que assegurem a continuidade do regime dos militares.

O governo de Mubarak recorreu simultaneamente à força das armas, espancando e expulsando a imprensa internacional do país, soltando suas forças paramilitares às ruas para espetáculos de atrocidades, mas também acenou com promessas de negociações. O braço direito de Mubarak, Omar Suleiman, por 18 anos chefe do serviço secreto egípcio, é o vice-presidente encarregado do diálogo. Essa pantomima tem sua lógica. Na eventualidade de a permanência de Mubarak tornar-se insustentável, Suleiman seria a garantia de que as mudanças não chegassem a ser profundas. Com o apoio dos Estados Unidos, que em nenhum momento pediu sua saída, Mubarak ainda exerce suas funções de presidente. Suleiman, relatando as conversas que teve com seu chefe, disse que Mubarak considera que "a juventude do Egito merece o apreço da nação" e que ela deve deixar de ser perseguida. A reverência não é pura formalidade - ele continua dando as cartas.

Apesar de continuar brincando com fogo, o governo tem sido beneficiado com a falta de lideranças populares da oposição, um fruto necessário de 30 anos de ditadura. É um movimento clássico em situações de queda de regimes ditatoriais - a insatisfação popular serve de trampolim para a oposição consentida pelo regime ou por oportunistas de toda a espécie. A farsa se repete também no Egito. Os partidos Wafd e Tagammu se apressaram em participar da cúpula do movimento rebelde, embora os manifestantes não os reconheçam como legítimos representantes de suas aspirações, e sim como adversários de estimação de Mubarak. Apesar de forte e organizada, a Irmandade Muçulmana viveu na clandestinidade nas últimas décadas e não esteve na linha de frente da rebelião egípcia.

Como o tempo é essencial em momentos históricos como o que vive o Egito, o momento favorável à oposição parece correr o sério risco de se dissipar. Mubarak anunciou um aumento de salários de 15% para seis milhões de funcionários públicos, enquanto seu vice ainda negocia com representantes da oposição o óbvio: o fim das leis de exceção que vigoram há 30 anos, liberdade de imprensa, libertação de manifestantes presos etc. Suleiman iniciou também discussões para alterar os artigos constitucionais que tratam das restrições feitas aos candidatos à Presidência e os que definem o número de mandatos permitidos aos eleitos ao Executivo.

Há fortes sinais de trapaça no ar e um processo de decantação na oposição. Mohamed ElBaradei e a Irmandade Muçulmana, embora não se neguem a negociar com o regime, continuam exigindo a saída de Mubarak, a dissolução do Congresso e um governo de coalizão para dirigir a transição. Não se trata de uma opção preferencial pelo radicalismo, mas sim de obter o mínimo para que as mudanças exigidas possam ser feitas.

O aumento salarial concedido por Mubarak é apenas uma pequena amostra do que ele fará para manter seu partido, ironicamente intitulado Nacional Democrático, com as rédeas do poder. Se a máquina montada pelo atual governo supervisionar as eleições de setembro, elas serão tudo, menos livres e justas. Foi assim nas últimas três décadas e, com uma ou outra alteração cosmética, pode ser assim novamente se um ditador determinado, e um Congresso fantoche, que terá de aprovar leis eleitorais, não forem desalojados.

A onda de moderação, porém, pode se desmanchar no ar se servir apenas para fazer os protestos refluirem e tudo se resolver em negociações de gabinete, onde o governo leva vantagem. O risco de tentar impedir ímpetos de mudança como o que se espalha pelas ruas do Egito é o de uma segunda onda de revoltas, impulsionadas pela frustração, e que serão dirigidas por radicais.