Título: O corte de despesas e a política fiscal de longo prazo
Autor: Caetano, Marcelo Abi-Ramia
Fonte: Valor Econômico, 16/02/2011, Opinião, p. A14

O recente anúncio de corte de gastos por parte do governo federal foi recebido de modo ambíguo pelos analistas. Alguns o elogiaram, outros o colocaram em dúvida ao afirmarem não ser possível cortar R$ 50 bilhões em custeio ou que a redução de despesa não seria suficiente para o alcance da meta de superávit primário. Consenso somente em relação à necessidade do detalhamento das despesas a serem efetivamente cortadas.

Interessante notar que houve pontos positivos do programa de redução de despesas que fugiram da análise.

Há três aspectos relevantes. Primeiro, anunciou-se o ajuste por redução de despesa, e não por aumento de receita. Até o momento, o governo não propôs a recriação da CPMF ou elevação de tributos para a obtenção da meta fiscal. Segundo, há respeitável esforço do governo em manter o salário mínimo em R$ 545,00, o que representa a manutenção do seu poder de compra em relação ao ano passado. Não se procura fazer o ajuste fiscal por meio de corrosão salarial, tampouco se adota política de reajuste de benefícios previdenciários que comprometa as contas públicas. Terceiro, intenciona-se manter o total despendido com investimento público, ou seja, procura-se manter o gasto bom do governo, aquele que amplia a capacidade produtiva do país.

Comparado a um histórico em que o ajuste de contas se deu por elevação de tributos e corte de investimentos, é uma mudança de rumo a se comemorar caso tudo ocorra dentro do anunciado.

O lado negativo - não do programa em si, mas do debate que o sucedeu - foi o deslocamento da discussão da política fiscal para sua gestão de curto prazo sem o devido enfoque nas políticas que garantam a solvência fiscal de longo prazo.

Considerando o orçamento deste ano, não há como se fazer nada muito diferente em relação ao plano de intenções do governo. Certo que haverá maiores discussões acerca das áreas que serão atingidas pelas cortes e do valor exato da redução da despesa, mas todos esses pontos se referem à gestão de curto prazo da política fiscal.

A solvência fiscal de longo prazo demanda estudo e ação em três elementos: a rigidez orçamentária, as reformas da previdência e tributária. Sem o devido enfretamento destes fatores, a cada ano, observaremos nova rodada de discussões sobre o ajuste fiscal de curto prazo sem alteração em suas características estruturais que comprometem o equilíbrio de longo prazo das contas públicas.

A situação tende a se deteriorar em decorrência dos efeitos do envelhecimento populacional sobre a previdência.

Muito improvável imaginar que em um ambiente democrático e em um período de um único mandato seja possível realizar tantas alterações simultaneamente com outras reformas necessárias, mas sem repercussões fiscais, como a reforma política, por exemplo. Todas elas apresentam custo político bastante elevado. O último, e talvez único, momento histórico em que o Brasil passou por diversas reformas institucionais concomitantes ocorreu no início do regime militar.

Isso não serve de justificativa à inação, mas sim à escolha de determinadas reformas estruturais que se conciliem à ação fiscal de curto prazo. A reforma da previdência é a de custo político mais elevado - os protestos na Europa em 2010 demonstram isso - mas é algo que o país terá que enfrentar mais cedo ou mais tarde dado o nosso acelerado processo de envelhecimento.

Caso a previdência seja escolhida como um dos itens a se reformar - como o fizeram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no primeiro ano do seu segundo mandato e o ex-presidente Luís Inacio Lula da Silva no primeiro ano do seu primeiro mandato - há quatro aspectos que merecem ajustes. A adoção de uma idade mínima para a aposentadoria pelo INSS, a revisão nos critérios de concessão e fórmula de cálculo das pensões por morte, a política de indexação dos benefícios e a adoção da previdência complementar para servidores públicos. Em algum momento no futuro, mas não necessariamente nessa gestão, todos esses pontos sofrerão modificações.

Avalio como baixa a probabilidade de reforma nas regras de indexação nesta gestão dado que o governo já se comprometeu com a manutenção da política de reajuste do salário mínimo pela inflação acrescida do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores. Dos demais pontos, a criação da previdência complementar para servidores públicos exige somente a aprovação de um projeto de lei encaminhado ao Congresso em 2007 durante o governo Lula.

Trata-se de uma reforma necessária, não somente por questões fiscais, mas também de equidade. Em 2010, o INSS apresentou déficit de R$ 42,9 bilhões para atender a um público de 24,4 milhões de beneficiários. Por sua vez, somente a previdência dos servidores civis e militares da União teve necessidade de financiamento de R$ 51,2 bilhões para pagar a menos de 1 milhão de aposentados e pensionistas. É uma expressiva distribuição de renda de toda a sociedade para um grupo de servidores.

Ajustes de curto prazo são precisos, mas devem ser complementados por reformas de longo prazo para uma solução definitiva para o problema dos cortes e contingenciamentos orçamentários a cada ano.

Marcelo Abi-Ramia Caetano é economista do IPEA.