Título: Justiça favorece gringos antes de estudo da Funai
Autor: Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 05/08/2010, Brasil, p. 10/11

Fundação confirma a presença de povos indígenas na região cearense, mas juiz reconhece grupo espanhol como proprietário dos terrenos em litígio

Enviado especial

Itapipoca (CE) As comunidades de Buritis e de São José, que reivindicam as terras compradas pelo empreendimento Nova Atlântida, tiveram uma derrota judicial na disputa com o consórcio de empresários espanhóis. Em 29 de julho, o juiz federal Marcos Mairton da Silva, de Sobral (CE), decidiu que as terras onde estão fixadas essas comunidades, no município de Itapipoca, não podem ser consideradas terras indígenas. A decisão foi tomada antes da conclusão do relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) que caracteriza a presença de índios na região e delimita a área da terra indígena tremembé a ser demarcada. O projeto turístico tem valor estimado em R$ 2,4 bilhões.

Na sua decisão, o magistrado considerou um ofício encaminhado pela Funai em outubro de 2008, informando que seria formado, a partir de dezembro daquele ano, um grupo técnico para fazer os estudos de identificação e de delimitação daquelas comunidades. O certo é que, até a presente data, não se tem notícia de que tais estudos tenham se realizado. Ou seja, não há uma posição oficial da Funai declarando que as terras discutidas nesses autos são indígenas, argumentou o juiz. Em nota enviada ao Correio na segunda-feira, a Funai informou que o relatório de identificação e localização será concluído até o fim deste ano. Mas a fundação apresentou informações sobre a presença dos tremembé na região.

Por enquanto, a Funai diz poder afirmar que o povo indígena tremembé é citado em documentação histórica e em diversas obras do período colonial, que fazem referência à sua presença na extensa região litorânea que segue do Pará ao Ceará, nos séculos 16, 17 e 18. No passado, foram aldeados em missões, no Maranhão e no Ceará, muitas vezes convivendo com outras etnias também aldeadas pelos religiosos. Almofala (distrito de Itapipoca) foi o mais conhecido aldeamento dos tremembé, porém, suas terras acabaram sendo invadidas gradativamente por latifundiários. Contudo, a população indígena continuou vivendo na mesma região, mas somente passaram a reivindicar o reconhecimento oficial de sua identidade étnica a partir da década de 1980.

Limites A Funai deixou claro que os estudos realizados para a identificação e a delimitação tratam das demandas das comunidades Buritis e São José, mas fez uma ressalva: Isso não significa que as áreas reivindicadas serão demarcadas em sua totalidade. Os limites e a área total da terra indígena somente serão divulgados após a publicação do relatório no Diário Oficial.

O juiz federal também utilizou como argumento na sua decisão uma certidão do cartório de Itapipoca declarando que o imóvel em questão tem filiação de domínio no período de 60 anos, adquirido por José Galvão Prata em 1976, por compra a Zulmira Souto Carneiro. Esta adquiriu o imóvel em 1973, por herança de Euclides Carneiro da Silveira, que já era proprietário desde 1939, tendo recebido tal propriedade por herança de seu pai, José Maria da Silveira. Segundo tal certidão, o imóvel fora adquirido pelas empresas espanholas em 1980. O fato é que não se está a tratar de terras devolutas ou de propriedade desconhecida, e sim terras cujo domínio tem a chancela do registro civil há muitas décadas, diz a sentença.

O magistrado acrescenta que, desde 1988, a área em questão é considerada zona urbana, de acordo com a Lei n° 29/88, do município de Itapipoca. O juiz reconhece que o direito dos indígenas está previsto na própria Constituição federal, não podendo ser afastado ou restringido por lei municipal. Mas ressalva que, para afastar a lei municipal, sob o argumento de que o município declarou urbana uma área indígena, e ao mesmo tempo negar validade a documentos do registro civil, parece-me necessário que o juiz esteja diante de elementos probatórios muito convincentes. E concluiu: Nos autos, o que se observa é que a Funai nunca realizou qualquer estudo específico para verificar se aquela área se tratava ou não de terras indígenas. O Ministério Público Federal no Ceará informou que deverá recorrer da decisão do juiz federal.

O certo é que, até a presente data, não se tem notícia de que tais estudos tenham se realizado. Ou seja, não há uma posição oficial da Funai declarando que as terras discutidas nesses autos são indígenas

Marcos Mairton da Silva, juiz federal

Divisão na comunidade

A líder indígena Erbene Veríssimo, 46 anos, conta que a luta pela identificação da comunidade Buritis começou em 2002. Chegaram a conseguir a paralisação do empreendimento turístico de Cidade Nova Atlântida. Ela soube da decisão da Justiça contrária aos interesses da comunidade, mas disse que ainda tem confiança no recurso do Ministério Público. A colega Adriana Carneiro informa que 200 pessoas moram nas duas comunidades Buritis e São José , mas apenas 110 desejam ser reconhecidas como indígenas. Os outros acreditam que a empresa vai trazer empregos.

Erbene lamenta a divisão da comunidade: A gente era unido. Eles dividiram a gente. Ela conta que os dissidentes participaram de uma reunião, há pouco tempo, com representantes do projeto turístico. Depois do encontro, ela conversou com um jovem que havia conversado com os empresários. Eu tinha medo que ele tivesse se entusiasmado com as promessas de emprego. Ele falou disso, e também comentou que a empresa prometeu levar a comunidade para outros lugares. Eu disse que isso não podia acontecer, porque a gente iria se dispersar e se distanciar da nossa cultura, das nossas tradições. Ele, então, disse: Mas nós não somos índios. Eu perguntei quem tinha falado isso. Ele respondeu: Eles explicaram na reunião que nós não somos índios.

Segundo Erbene, a luta para não perder as tradições e conquistar o direito sobre as terras não é de hoje. Ela lembra que, no passado, um dos antigos proprietários da área exigia que os moradores da localidade trabalhassem três dias da semana para ele. Somente no resto da semana os agricultores podiam cultivar a própria roça. Meu avô Raimundo Veríssimo não aceitou isso e foi embora. Muitos foram viver em Fortaleza, conta. (LV)

Não existem índios no Ceará

O advogado do grupo Nova Atlântida, Djaura Dutra, é incisivo: Não existem índios no Ceará. Ele afirma existir uma certidão, no arquivo público de Vitória (ES), informando que o imperador D. Pedro II mandou, em 1860, que o presidente da província do Ceará incorporasse todas as terra que haviam sido doadas aos índios, uma vez que eles não mais viviam aldeados, e sim confundidos com a massa da civilização civilizada.

Segundo Dutra, o que estaria ocorrendo no Ceará seria uma rememoração da cultura indígena. Mas a Constituição não protege nada disso para efeito de demarcar área indígena alguma. O advogado sustenta que as comunidades de Buritis e de São José não são indígenas. A partir da decisão tomada pela Justiça na semana passada, ele afirma que a Nova Atlântida vai cuidar do novo licenciamento da obra, porque houve algumas mudanças na lei ambiental. Acredito que não haja possibilidade de o quadro ser revertido no Tribunal da 5ª Região nem no Superior Tribunal de Justiça (STJ), comentou.

O ex-secretário de Turismo de Itapipoca Paulo Maciel afirma que as comunidades Buritis e São José já tentaram, em 1999, tomar essas terras dos espanhóis, mas como integrantes dos sem-terra. Não deu certo. Dois ou três anos depois, se identificaram como sendo da etnia tremembé. Dizem que o pessoal do Buritis está fazendo um intensivão para aprender a dança da chuva, ironiza Maciel. (LV)