Título: Ditador se reinventou, mas não deixou mão de ferro
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2011, Internacional, p. A12

Muamar Gadafi chegou a ser apresentado como o "Che Guevara" do Oriente Médio, fomentando a revolução contra os "imperialistas do Ocidente". Na Líbia, alemães de extrema esquerda, irlandeses ultranacionalistas, extremistas bascos e palestinos acharam apoio. Foi chamado também de "cachorro louco" pelo presidente Ronald Reagan, que enviou caças para bombardear seu palácio em Trípoli. Porém, desde a década de 90, Gadafi se reinventou, atraiu empresas e se distanciou do terrorismo. Só não mudou a mão de ferro com que dirige a Líbia.

Gadafi nasceu numa tenda beduína perto de Sirt, no golfo de Sidra, em 1942. Na adolescência, tomou contato com a onda de revoluções anticoloniais do norte da África de uma maneira que o marcaria profundamente. Seu grande ídolo foi o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, defensor do pan-arabismo e do socialismo árabe, uma conjunção de nacionalismo árabe e socialismo.

Ao entrar para a academia militar líbia, Gadafi já estava imbuído da ideia de que o único modo de seu país ser realmente independente era o do confronto com os europeus e da união com os vizinhos árabes. Era o embrião de seu internacionalismo revolucionário.

O exemplo dos egípcios foi forte para os jovens militares líbios. Assim como a revolução de 1952 no Egito, na qual jovens oficiais derrubaram a monarquia, um grupo de jovens oficiais líbios investiu em 1969 contra o rei Idris e instituiu um governo revolucionário liderado pelo capitão (logo promovido a coronel) Gadafi.

O regime adotado foi o da "democracia direta". Era o povo que estava no poder, por meio das comunas e dos conselhos populares. Por isso, Gadafi não precisaria ocupar cargo nenhum.

Ele promoveu o "socialismo islâmico", descrito em três volumes de seu Livro Verde - o equivalente líbio ao Livro Vermelho, em que Mao Tsé-tung delineava os preceitos da Revolução Cultural. A solução para os problemas da democracia? O poder popular. A solução para os problemas econômicos? O socialismo. A solução para os problemas sociais? O Corão.

Na realidade, ele se apoderou totalmente do Estado. Não poderia haver oposição, já que o poder era do povo - aí estava a justificação para tratar com violência qualquer tipo de dissidência.

Apesar de permitir a inciativa privada para os pequenos negócios, as grandes empresas e o petróleo, principal fonte de riqueza do país, tornaram-se estatais.

A ideia de exportar a revolução, muito forte nos anos 70, começou a criar problemas nos anos 80.

As relações com os EUA chegaram à beira da guerra. Washington então patrocinou sanções que isolaram a Líbia pela maior parte da década de 90.

Apenas no início deste século esse isolamento começou a ser quebrado. E Gadafi pode se reinventar internacionalmente.

Prometeu combater a Al-Qaeda, entrou em acordo para indenizar as vítimas de alguns atentados famosos que tinham a mão líbia por trás, como o da discoteca em Berlim e o do voo da PanAm que explodiu sobre Lockerbie, na Escócia.

Reinventou-se como líder de um movimento de "pan-africanismo", que na verdade nunca pegou, e como aliado do venezuelano Hugo Chávez na invenção de um Tratado do Atlântico Sul, nos moldes da Otan - também nunca pegou.

A reinvenção que deu certo foi a aproximação como Ocidente. Foi cortejado pelos britânicos, pelos franceses e principalmente pelos italianos, todos de olho na indústria de petróleo líbia.

Com os EUA, a coisa foi profunda. Foi o republicano George W. Bush revogou as sanções ao país e Condoleezza Rice tornou-se em 2008 a primeira secretária de Estado americana a visitar o país desde os anos 50.

Quanto a Israel, para surpresa de muitos, passou a defender uma solução negociada.

Mas em uma coisa, ele não mudou. Em 2006, Gadafi disse abertamente que quem o apoiava e apoiava o povo líbio deveria "matar os inimigos" da revolução e qualquer um que pedisse mudanças políticas na Líbia.