Título: O cuidado necessário para a reforma não virar aberração
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2011, Opinião, p. A14

A parte delicada do debate sobre reforma política é conseguir que ele se converta, de fato, em melhorias do sistema político brasileiro, e não seja uma perigosa porta que se abre para atender às conveniências pessoais dos políticos que começarão a discuti-la, a partir da instalação da comissão especial no Senado, prevista para hoje. Esse é um tema em que a divergência é a principal convergência. O sistema eleitoral e partidário está diretamente associado à sobrevivência política de cada um dos parlamentares que votará as mudanças na legislação, e as necessidades de cada político não necessariamente correspondem às de outro político, ainda que do mesmo partido. Essa é a razão pela qual a reforma política é uma eterna obra em construção. E porque, na impossibilidade de um acordo, dessas tentativas de modernização do sistema político sempre emerge alguma aberração que, mais à frente, pela mesma falta de consenso, vai se consolidar na lei sem que nenhum partido ou força política tenha como demovê-la.

Por essa razão, a nova discussão da reforma política deve, em primeiro lugar, se precaver de novas bobagens. A coligação proporcional, por exemplo, foi contrabandeada para dentro da lei no reinício do pluripartidarismo, ainda no último governo militar, para driblar as exigências mínimas de desempenho partidário, e lá ficou. O quociente eleitoral mínimo passou a ser exigido do bloco de partidos que se coligaram para disputar a Câmara de Vereadores, a Assembleia Legislativa ou a Câmara de Deputados, cujos titulares são escolhidos pelo voto proporcional, e não mais a cada um dos partidos. Essa excrescência tem o poder de manter ativas, no quadro partidário, agremiações sem nenhuma representação social, legendas de aluguel nas eleições que reforçam, depois do pleito, a já vasta bancada clientelista do Legislativo.

Se a reforma política evitar as aberrações novas e jogar fora umas antigas, será melhor ainda. A coligação nas eleições proporcionais é uma delas. O fim do "eleja um senador e leve dois suplentes que você não conhece" também. O cuidado, todavia, tem que ser o de não trocá-las por outras bobagens. Desde que o Supremo Tribunal Federal referendou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que o governador eleito, se cassado, será substituído por aquele que perdeu a eleição - num sistema que prevê dois turnos de votação para a eleição de prefeitos, governadores e presidente -, a ideia de que quem perdeu nas urnas pode renascer das cinzas sem se submeter a uma nova eleição parece estar se tornando trivial. Segundo o repórter Cristian Klein, em matéria publicada na edição de ontem do Valor, uma das propostas em jogo é que o suplente seja substituído pelo segundo mais votado, que a rigor perdeu a eleição. O que é preciso é submeter o nome do suplente de senador ao eleitor, não guindar o derrotado à vaga, ou instituir novas eleições para preencher as vagas abertas pela impossibilidade do titular.

Além das aberrações, uma reforma também sempre abre a possibilidade de contrabando de uma esperteza política. A "janela" de infidelidade defendida pelo vice-presidente da República, Michel Temer, nos seis meses anteriores às eleições, seria de grande utilidade para o seu partido, o PMDB, para onde tendem a convergir os oposicionistas que hoje estão desconfortáveis com o fato de serem minoria no Congresso, se existir uma possibilidade legal para isso. O PMDB é um partido de governo grande, mas mais aberto a adesões do que o PT da presidente Dilma Rousseff. Iria maior para as urnas em 2014, quando o atual governo disputaria um novo mandato. A questão é se, doutrinariamente, pode existir apenas meia lealdade partidária. A decisão do STF consolidou a ideia de que o mandato é do partido, e não daquele que foi eleito por ele. Não existe lógica em relativizar esse entendimento em véspera de eleição.

A legislação eleitoral e partidária brasileira precisa, de fato, de ajustes, mas o sistema político deve ser entendido como um todo. Assim, uma reforma política não pode prescindir de uma mudança constitucional, para acabar com o foro privilegiado. A proteção jurídica de políticos eleitos tem tornado o Congresso um grande atrativo para pessoas que respondem à Justiça. A Lei Ficha Limpa não mudou essa realidade porque provocou grandes desentendimentos nas instâncias judiciárias nestas eleições. O Legislativo continua, de fato, um grande negócio para quem deve à Justiça.