Título: A agenda legislativa de Dilma
Autor: Almeida, Alberto Carlos
Fonte: Valor Econômico, 25/02/2011, Eu & Fim de Semana, p. 22

A tradição brasileira reza que se deve evitar escrever intenções futuras. A razão é simples e tem a ver com o nosso ditado "vale o que está escrito". Ao colocar no papel intenções futuras o governo abre a porta para cobranças que poderiam ter sido evitadas. É exatamente por isso que ninguém sabe qual é a agenda legislativa do governo Dilma Rousseff. Não há um documento escrito que afirme as intenções de mudança legislativa do governo. Aliás, a campanha eleitoral recém-concluída mostra quanto os dois principais candidatos fugiram de registrar no TSE seus programas de governo.

O supostamente bem preparado José Serra, longe de apresentar um diagnóstico técnico do país e o natural corolário de propostas igualmente técnicas, entregou um somatório de pronunciamentos públicos desconexos. Estava cumprida de maneira formal a tarefa legal. Dilma rubricou um programa de governo esquerdista, que muito tinha a ver com os militantes do partido e nada com a elite do PT. Ela teve de dizer que rubricar não é o mesmo que assinar, abrindo, assim, a porta para manter o PT nos rumos conservadores definidos por Lula desde sua posse, em 2003.

Programa de governo e agenda legislativa não estão escritos, mas a maioria do governo na Câmara dos Deputados está devidamente registrada no painel de votação da Casa. O governo teve, na aprovação do salário mínimo de R$ 545, nada mais, nada menos, do que 361 votos. Isso é muito mais do que se precisa para aprovar uma emenda à Constituição.

Todos os 77 deputados do PMDB votaram com o governo. Eduardo Cunha (PMDB-RJ) não teve coragem de votar contra o mesmo governo que o destituiu da influência que tinha sobre Furnas. Dilma provou, com o caso Eduardo Cunha, que um deputado isoladamente contra a Presidência da República não passa de um anão político. O PSB também apoiou de forma incontestável o governo com 30 votos a favor do salário mínimo. O PC do B, que, comparando-se o seu acesso a cargos e recursos no governo Lula, perdeu espaço no governo Dilma, também apoiou de maneira incontestável a proposta situacionista.

Não surpreende o apoio da Câmara a Dilma. Lula e Fernando Henrique também foram premiados com docilidade equivalente. Isso evidencia algo importante: o PT e seu governo têm a faca e o queijo na mão para aprovar a sua agenda legislativa, incluindo propostas que venham a exigir mudanças na Constituição.

Já que a maioria legislativa está pronta, testada e acabada, a grande questão, então, é achar onde está essa agenda legislativa. Ela não está, repito, em nenhum documento escrito. A agenda legislativa do governo Dilma está, muito provavelmente, na cabeça do ministro Antonio Palocci. Alguns fatos recentes que tangem à formação do governo permitem compreender por que Palocci é a figura mais importante do governo depois da presidente.

O primeiro fato diz respeito à importância da Casa Civil desde o primeiro mandato de Lula. Foi na Casa Civil que Lula abrigou José Dirceu. Naquele período, Dirceu era o braço direito político de Lula. Após a terceira derrota eleitoral para presidente, em 1998, Lula delegou a Dirceu a árdua tarefa de domesticar o PT. O trabalho foi realizado com enorme sucesso. Um acidente de percurso denominado mensalão fez que a vaga aberta na Casa Civil fosse ocupada por Dilma. Não parece coincidência o fato de ela hoje ser presidente. Aliás, a sorte premiou o Brasil ao derrubar José Dirceu daquele posto; caso contrário, ele provavelmente seria a Dilma de hoje. A Casa Civil foi, portanto, o ministério mais importante dos últimos oito anos de governo do PT. Tudo indica que continua sendo.

O destino de Palocci foi selado quando Michel Temer se impôs vice de Dilma. Sabemos todos que Lula não queria Temer na Vice-Presidência. Era, e continua sendo, uma temeridade (trocadilho irresistível) ter alguém de grande envergadura política muito próximo de Dilma. Temer conhece como ninguém a Câmara dos Deputados e os meandros das negociações políticas ali realizadas. Ele também tem muita liderança sobre o seu partido, o segundo maior da Câmara, atrás apenas do PT. Considerando-se todas as características políticas que fazem de Temer um grande articulador, Dilma precisava, para contrabalançar o peso de seu vice, de um grande nome no cargo mais importante do governo. Eis aí a explicação para Palocci na Casa Civil.

Por outro lado, o recado de Dilma, quando nomeou e divulgou a equipe econômica composta por Guido Mantega, Miriam Belchior e Alexandre Tombini, foi muito claro: "Nós do PT já sabemos o que fazer com a economia, já sabemos o caminho certo e vamos trilhá-lo, justamente por isso podemos ter técnicos sem destaque em nossa equipe econômica".

Inicialmente sem destaque, esses técnicos passarão a ser cada vez mais novas estrelas do PT, à medida que forem tomando as decisões corretas. O sucesso da economia resultará no sucesso da equipe que a conduz. Passados quase dois meses de governo, não é possível sustentar que essa equipe inicialmente apagada tenha cometido algum erro grave. O que estamos vendo é a manutenção da política econômica do governo Lula, que foi a mesma política econômica do segundo mandato de Fernando Henrique. Sendo assim, está mais do que evidente que o governo não precisava usar a bala de canhão chamada Palocci no Ministério da Fazenda. É um desperdício matar mosca com bala de canhão.

Palocci está na Casa Civil não apenas para contrabalançar o poder e a habilidade de Temer. Essa é, digamos, a atividade de veto, a agenda negativa do ministro da Casa Civil. Palocci está lá, também e principalmente, para tocar para a frente a agenda positiva, para negociar o apoio político necessário à agenda legislativa do governo. O que o governo Dilma fará de novo depende dos movimentos de Palocci. Não que outras áreas não venham a tomar iniciativas inovadoras. Elas terão que fazer isso, uma vez que Copa do Mundo e Olimpíada se aproximam a passos largos. No âmbito da Casa Civil, a inovação tende a vir sob a forma de legislação - essa é a principal diferença entre a tarefa de Palocci e as tarefas dos demais auxiliares da presidente.

Atualmente, é impossível saber o que Palocci pensa sobre qualquer tema ou questão. Faz ele muito bem em não falar ou falar pouco. Faz ele muito bem em ser "low profile". Todavia, há muito pouco tempo, durante a campanha eleitoral, Palocci falou muito para públicos mais amplos, ora no Brasil, ora no exterior, ora para grupos mais fechados, como investidores estrangeiros, ora para públicos mais amplos. O mais importante é que Palocci não necessariamente falou por meio de sua boca, mas vocalizado pela então candidata Dilma ou mesmo por meio de matérias de jornais acerca da campanha da candidata governista. Não nos esqueçamos de que ele era o coordenador da campanha. Não é preciso muito para saber que várias reportagens feitas durante a eleição foram pautadas pelo comando da campanha. Ele precisava ter, e de fato tinha, controle sobre o que era publicado nos principais jornais brasileiros.

Palocci está calado hoje, mas não esteve durante a campanha. Assim, a agenda legislativa está nos jornais publicados até o dia em que foi realizado o primeiro turno. Por meio deles é possível saber a agenda legislativa do governo, é possível saber o que estava (e, salvo melhor juízo, ainda está) na cabeça de Palocci: regulamentação da previdência dos servidores públicos, aumento do tempo de contribuição para os que vão entrar no mercado de trabalho, controle de gastos com pessoal, desoneração em setores específicos - como saneamento, transporte e energia -, ampliação da participação da iniciativa privada em alguns segmentos com destaque para aeroportos e infraestrutura de um modo geral, legislação reformista na microeconomia e na administração pública.

A agenda reformista do governo Lula foi levada a cabo até o dia em que Palocci saiu do governo. Depois de um longo interregno, ele está de volta. Agora mais forte. Agora ao lado de uma presidente que não tem medo de exercer a força real que tem a Presidência. O mais interessante da agenda não são as medidas específicas, mas, sim, seu espírito. O espírito da agenda legislativa do governo está afinado com as mudanças rumo à maior eficiência da gestão pública e ao controle de gastos institucionalizado. Não estou afirmando que o governo será capaz de tomar todas essas medidas, mas que vai tentar realizá-las, disso não resta dúvidas. O mais razoável é imaginar que ele obterá sucesso parcial nesse feito. Afinal, tudo no Brasil é negociado.