Título: O DEM e o subterfúgio do partido do prefeito Kassab
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2011, Opinião, p. A16
O DEM, ex-PFL, sempre amargou divisões internas, dadas menos por questões de ordem doutrinária do que por disputas entre lideranças por maior espaço na política nacional. Enquanto foi governo, todavia, essas divergências cessavam quando ameaçavam o interesse coletivo, aí entendido como a soma dos interesses de cada liderança regional, mediados por uma organicidade ideológica que era a síntese das posições internas. O partido era a difícil junção de um projeto político liberal-conservador e de lideranças regionalizadas, donas de redutos eleitorais nas regiões mais pobres do país. Hoje, quando sua convenção nacional se reunir para escolher a direção nacional do partido, a realidade será outra: a de uma legenda em que o consenso doutrinário cede espaço, em definitivo, para os interesses político-pessoais de seus líderes. O DEM deve rachar e encolher mais do que já se viu reduzido nas eleições passadas.
O partido, que competiu com o PSDB e o PMDB no passado como maior bancada na Câmara e no Senado, saiu das eleições de outubro com uma mirrada bancada de 43 deputados federais e cinco senadores e uma enorme crise de identidade. Para uma legenda de formação tradicional, completar três mandatos presidenciais na oposição reduziu drasticamente suas chances eleitorais. Mais do que isso, a associação com o PSDB obstruiu a zona de entendimento doutrinário, que compensava no passado eventuais desentendimentos entre lideranças. O partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, durante seus dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002), embarcou com o PFL na onda liberalizante da economia mundial. Durante principalmente o primeiro mandato de FHC, os dois partidos se encontraram em posições tradicionalmente defendidas pelo PFL. Após a vitória do petista Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, o barco oposicionista, tripulado especialmente pelo PSDB e pelo PFL, seguiu pelo mesmo rio. No poder, o PT naturalmente tendeu ao centro, ocupando a posição da socialdemocracia antes reivindicada pelo PSDB. Os dois tradicionais aliados se viram, nas eleições seguintes, disputando o voto na mesma faixa de eleitorado, enquanto o PT conseguia se apropriar dos eleitores mais pobres do Norte e Nordeste. Foi principalmente o PFL, depois chamado DEM, o prejudicado por esse deslocamento ideológico no quadro partidário.
O movimento seguinte à terceira vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais é o do salve-se quem puder. No DEM, não existe uma outra designação para a dissidência articulada pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. A articulação de um novo partido, o Partido Democrático do Brasil (PDB), com o anúncio prévio de que a agremiação apenas servirá para burlar a lei e agregar os dissidentes ao PSB do governador Eduardo Campos, mais do que uma suposta estratégia eleitoral para as eleições presidenciais de 2014, é uma primitiva estratégia de adesão ao governo de Dilma Rousseff (PT). Viabilizado em São Paulo pela aliança com José Serra nas eleições para a prefeitura da capital, em 2004, para o governo do Estado, em 2006, e novamente para a prefeitura, em 2008, o DEM de Kassab foi inviabilizado pela aliança com o mesmo Serra em 2010. Derrotado na disputa pela Presidência, o PSDB manteve o governo do Estado, mas nas mãos de Geraldo Alckmin, o traído pelo grupo Serra-Kassab nas eleições de 2008. A tentativa do prefeito da capital de conquistar o legado quercista do PMDB foi rechaçada por uma rápida ação do grupo de Michel Temer no partido.
Uma incorporação ao PMDB ou a formação de um novo partido que, mais à frente, tomasse um outro rumo, poderia ser uma solução para o DEM nacional. O PDB, no entanto, será um caminho apenas do grupo Kassab. O prefeito, ao articular a nova legenda, parece ter conseguido o que os grupos internos não haviam obtido até agora: termos de composição interna. Divulgar o PDB como "partido-janela" que vai desaguar no PSB mais à frente, ao que tudo indica, afugentou do projeto quadros ideológicos do DEM, que se recolheram ao partido em escombros e, ao que parece, evitarão a aventura socialista de Kassab. É possível supor que o racha de Kassab não deixará o DEM muito menor do que o partido já ficou nas últimas eleições. E não tornará o PSB muito maior do que já é: as defecções anunciadas na hipótese de uma adesão do prefeito à legenda socialista são mais relevantes do que as adesões anunciadas.