Título: Militares ainda conservam poder político e econômico
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 09/03/2011, Especial, p. A12
A água mineral que borbulha de fontes rochosas no oásis Siwa, um aglomerado de palmeiras e cabanas de barro no deserto ocidental do Egito, tem a reputação de ser uma das mais puras na região.
A Safi Water, empresa que vende a água, tem como cliente o Exército dos EUA, que compra a água engarrafada para saciar a sede de milhares de soldados americanos no Oriente Médio.
É uma das empresas da Organização do Serviço Nacional de Projetos (OSNP), que faz parte do Ministério da Defesa egípcio e é uma das muitas entidades militares que produzem de tudo: de fertilizantes e veículos a azeite e pão.
Estima-se que o grande número de operações empresariais dos militares contribua com vários pontos percentuais para o PIB egípcio, mas essas atividades são raramente mencionadas na imprensa - a cobertura sobre os militares é proibida desde 1956. Agora que os generais egípcios estão governando o país, as empresas dos militares poderão ficar em maior evidência.
"Estamos entrando em um período em que transparência será a palavra de ordem no Egito, e será muito difícil manter o invisível império militar fora do radar", afirma Hicham Kassem, editor de um jornal no Cairo.
Até agora, o orçamento militar era um segredo de Estado, e a instituição inteira prestava contas apenas ao presidente Hosni Mubarak. Os interesses empresariais são representados por companhias opacas, como a OSNP, a Organização Árabe para a Industrialização, o Ministério de Produção Militar e a Companhia Al-Nasr de Serviços e Manutenção.
"O setor empresarial militar é uma caixa preta", diz Tamer Maher, diretor da Bi Technologies, uma empresa de software sediada no Cairo. "É impossível distinguir quais empresas estão fazendo o quê. Quais são lucrativas ou não."
Muitas das empresas de atividade civil pertencentes às Forças Armadas são um legado dos acordos de Camp David, em 1979; após o acordo de paz com Israel, o Exército desativou fábricas militares e encontrou outras finalidades para elas.
A Organização para a Industrialização Árabe, holding militar que tem uma joint venture com a Chrysler, deixou de fazer tanques e passou a fabricar carros e máquinas de lavar roupas nos anos 80.
No regime de Mubarak, o império de empresas militares tornou-o em grande parte autossuficiente, o que, dizem funcionários e diplomatas, foi uma tentativa de reduzir as pressões sobre o orçamento do Estado. "As empresas dos militares também mantinham-se silenciosas, cúmplices e solidárias", diz um diplomata ocidental.
O status especial isolou os militares da sociedade egípcia. Os oficiais têm seus próprios clubes, casas, equipes esportivas e até supermercados com suas próprias marcas de grão de bico e arroz.
A maior parte do que as fábricas produzem é para consumo dos militares - apenas o Exército é uma força de quase 500 mil pessoas.
O Ministério da Defesa controla vastas áreas de terras no norte e na costa do Mar Vermelho. De fato, grande parte dos terrenos para resorts, como Sharm el-Sheikh, na costa do Mar Vermelho, foi adquirida dos militares nos anos 80 e 90.
Um despacho redigido em termos oblíquos pelo Departamento de Estado dos EUA em 2008 e publicado pelo site WikiLeaks refere-se à finalidade do enorme número de imóveis de propriedade dos militares nas imediações do Cairo e do Mar Vermelho. "Esses imóveis são um "benefício social" em troca da garantia de estabilidade e segurança proporcionadas pelo militares", disse uma fonte citada no despacho.
Os militares não têm presença em alguns do setores mais importantes da economia egípcia, como telecomunicações ou petróleo e gás natural. Mas analistas dizem que as empresas privadas em muitos setores muitas vezes trabalham em associação com os militares.
Além disso, o opaco sistema de regulamentação imposto pelos militares assegura que eles tenham participação em grande parte da atividade econômica em outros setores - tudo, do espectro de frequências de rádio a empresas de telefonia móvel e até permissões para importar máquinas pesadas, depende dos militares.
O sistema de empresas civis e "taxas" cobradas do setor privado é reforçado por um tipo de direito "do berço ao túmulo" para a classe política. Tanto empresas militares como estatais oferecem postos confortáveis para os generais que optem por reforma antecipada.
"Há um enorme acúmulo desse pessoal e todos eles necessitam empregos", diz um empresário do ramo imobiliário no Cairo.
A presença das Forças Armadas na economia poderá influenciar a maneira como evoluirá a economia egípcia pós-Mubarak. O marechal de campo Mohamed Hussein Tantawi, ministro da Defesa e o homem que agora lidera a transição política, tem sido descrito em despachos vazados de fontes americanas como sendo resistente a reformas políticas e econômicas.
Mas os militares só agora estão se situando em meio à nova ordem e não está claro até que ponto eles estão intervindo na política econômica. O Exército tem uma influência invulgarmente forte em determinadas atividades econômicas, mas empresários argumentam que as empresas dirigidas pelos militares não representam concorrência ao setor privado.
Durante a revolução que durou 18 dias, o respeito ao Exército atingiu novas alturas, depois que os comandantes recusaram-se a reprimir manifestantes.
"É a primeira vez que algum deles faz algo assim. Esse é um Exército que não fez nenhuma declaração política há 30 anos", diz Jonathan Wright, editor do jornal "Arab Media and Society", com sede no Cairo. "Eles formam um grupo bastante privilegiado de pessoas que na maior parte do tempo cuida de seus próprios interesses."