Título: Princípios x interesses
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 08/08/2010, Mundo, p. 22

Discussão sobre as relações do Brasil com países acusados de abusos e violações alimenta o debate sobre política externa, que ganha espaço na agenda eleitoral. Candidatos ao Planalto assumem compromisso de 10 pontos

Mulheres ameaçadas de morte por apedrejamento, blogueiros proibidos de sair do país, civis em deslocamento forçado por guerras e conflitos armados dramas de outras partes do mundo ganharam a atenção dos brasileiros, e a preocupação com política externa e defesa dos direitos humanos passou a se refletir no debate eleitoral. No fim de junho, representantes dos presidenciáveis aderiram a uma agenda de 10 compromissos em torno de princípios humanitários, durante um seminário promovido em Brasília pelo Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa. É fundamental que os candidatos apresentem e debatam as diretrizes da política externa que implementarão, caso eleitos, declarou a representante da ONG Conectas Direitos Humanos e cossecretária do comitê, Camila Asano.

Houve unanimidade entre os representantes das campanhas de Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB), Marina Silva (PV) e Plínio de Arruda Sampaio (PSol) na adoção dos 10 pontos, que incluem desde a prioridade dos direitos humanos frente a outros interesses até o uso do diálogo em favor dos princípios humanitários.

No entanto, a deputada Iriny Lopes (PT-ES), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e autora do requerimento para a realização do seminário, lamenta que o interesse seja temporário. Direitos humanos ainda não entraram na agenda permanente. É muito factual: acontece um fato e aí as pessoas se manifestam. Não há uma compreensão de que eles devem permear todas as políticas de Estado, ressalta Iriny ao Correio. Mas ela comemora uma pequena vitória: Em parte, o fato de a questão aparecer na pauta eleitoral deve-se a alguns avanços das posturas brasileiras, tanto fora quanto dentro do país. E me refiro não só ao governo, mas também à sociedade.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido criticado por aproximar-se de países que as potências ocidentais consideram exemplos de desrespeito aos direitos humanos, como Irã, Coreia do Norte e Cuba. As pedras também têm caído sobre o Itamaraty, na figura do chanceler Celso Amorim. A política externa pragmática, que relativiza princípios, torna o Brasil complacente com os regimes autocráticos. Isso não é coerente com a tradição de nossa diplomacia, de alinhamento com a defesa da dignidade humana, criticou Marina Silva, na última sexta-feira. Em Brasília, um diplomata especialista no tema defendeu a posição do ministério. O fato de o Brasil não dirigir uma crítica pública (durante a visita de determinados governantes) não significa que essa preocupação não possa ser manifestada a portas fechadas, disse à reportagem.

Pesos e medidas Claudiene Santos, pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), destaca que as violações praticadas em alguns países acabam chamando mais a atenção do brasileiro do que outras. Por que a gente reconhece que a iraniana (Sakineh Ashtiani) que será apedrejada está sendo violentada e não reconhece também que a cubana (a blogueira Yoani Sanchéz) está sendo cerceada nos seus direitos? Algumas práticas violentas são reconhecidas mais facilmente, e aí entra o componente da cultura o que não significa que elas não possam ser repensadas, ainda que façam parte da tradição, analisa.

Iriny argumenta que violações de direitos econômicos, sociais e ambientais também constituem delitos contra a dignidade humana. Existem grandes potências que causam os maiores danos coletivos, porque inclusive extrapolam suas fronteiras. A quebra de postura em relação à proteção ambiental, no exercício da proteção comercial exagerada que obriga à pobreza países que poderiam ter um desenvolvimento maior: tudo isso é violação de direitos humanos.

A deputada considera que o inaceitável para um presidente do Brasil seria qualquer sinal de concordância com esse tipo de política adotada em outros países. Mas, apesar do aumento do peso no cenário internacional, ela avalia que o país ainda não está no ponto ideal, e precisa vencer problemas internos de direitos humanos. O Brasil ainda não tem essa potência toda em nível internacional para impor posições políticas, opina.

Sakineh contesta assassinato A iraniana Sakineh Ashtiani, objeto de uma campanha internacional e solidariedade para salvá-la da morte por apedrejamento, refutou a informação de que teria sido condenada também pelo assassinato do marido. Eles mentem. Estão preocupados com o interesse internacional pelo meu caso e tratam, desesperadamente, de distrair a atenção e confundir a imprensa para poder me matar em segredo, disse Sakineh, por meio de um intermediário, ao jornal britânico The Guardian. Na quinta-feira, o juiz iraniano Mossadegh Kahnemui disse a emissários da ONU que essa mulher, além de duplo adultério, foi culpada de um complô para matar o marido. A acusada sustenta que foi absolvida da acusação de homicídio, embora o autor do crime esteja solto. É porque sou mulher, denunciou.

Pecado universal

Todos os países do mundo violam direitos humanos, segundo seus defensores. Conheça os problemas de alguns governos com os quais o Brasil mantém relações

China Pena de morte, execuções extrajudiciais, tortura de prisioneiros e trabalho infantil.

Estados Unidos Pena capital, inclusive com cadeira elétrica e câmara de gás. No governo Bush, militares foram acusados de torturar detentos em Guantánamo, no Afeganistão e no Iraque.

Coreia do Norte Execuções extrajudiciais, desaparecimentos e detenções arbitrárias por motivos políticos.

Irã Impede as mulheres de pedir o divórcio, permite a condenação de menores de idade como adultos, cerceia a liberdade religiosa e castiga a homossexualidade. Aplica pena de morte por enforcamento e apedrejamento.

Cuba Mantém na prisão cerca de 180 dissidentes do regime dos irmãos Castro. Não respeita a liberdade de expressão nem o direito de ir e vir.

Colômbia Mais de 3 milhões de pessoas em deslocamento forçado por conflitos entre grupos rebeldes e militares, além de execuções extrajudiciais de civis suspeitos de cooperar com alguma das partes.

Honduras Assassinato de jornalistas que defenderam o presidente Manuel Zelaya após o golpe de Estado de junho do ano passado, como também de profissionais que apoiavam o presidente interino, Roberto Micheletti.

Venezuela Fechamento de meios de comunicação opositores ao governo de Hugo Chávez, coibindo a liberdade de imprensa. Erosão dos direitos democráticos.

Guiné Equatorial Prática de tortura e detenções arbitrárias são apenas as mais graves entre as violações cometidas nos 31 anos de governo do presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo.

União Europeia Registra casos de perseguições e discriminação contra estrangeiros em todos os 27 países-membros.

Governo entra em polêmica na ONU

Um documento enviado pelo governo brasileiro a outros 18 integrantes das Nações Unidas que discutem a revisão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) causou polêmica na semana passada. Alguns cientistas políticos, jornalistas e defensores dos direitos humanos consideraram que o texto favoreceria regimes ditatoriais. A Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH) alegou que não adianta dialogar com quem não quer falar e insistiu que as cobranças são fundamentais para avançar nesse terreno.

Na quinta-feira, o Itamaraty negou que o governo buscasse evitar a censura aos países violadores dos direitos humanos, e explicou que as considerações contidas no documento visam a fortalecer o CDH. A proposta brasileira reconhece que a combinação de ineficiências percebidas, a concentração geográfica desproporcional e a politização das discussões tiveram um impacto na cultura de trabalho do conselho. Apresenta sugestões de como tratar países acusados de ferir direitos, defende o diálogo e propõe visitas de delegações para averiguar as denúncias. Também sugere particular atenção à possibilidade de oferecer assistência técnica e mecanismos para o desenvolvimento e melhoria da atividade de monitoramento.

O chanceler Celso Amorim, em artigo sobre direitos humanos publicado no ano passado pela Revista de Política Externa, ressaltou que os ideais consagrados na Declaração Universal precisam prevalecer sobre a conveniência política. Segundo o ministro, as resoluções adotadas eram frequentemente inspiradas antes em motivações políticas do que na necessidade de monitoramento efetivo da situação dos direitos humanos. Defendemos uma abordagem para o tema que privilegie a cooperação e a força do exemplo como métodos mais eficazes do que a mera condenação, destaca o chanceler.