Título: O ajuste que aumenta gastos
Autor: Mendes, Marcos
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2011, Opinião, p. A14

O Governo Federal apresentou um plano de redução de despesa da ordem de R$ 50,1 bilhões. O objetivo declarado é aumentar o superávit primário e, com isso, reduzir o estímulo que o gasto do governo dá à demanda agregada, para conter uma taxa de crescimento acima do potencial da economia brasileira, que gera pressões inflacionárias.

Feitas as contas, o que se tem, após tal ajuste, em vez de redução de gastos, é um aumento da despesa em relação a 2010 da ordem de R$ 74 bilhões, equivalente a 0,3 pontos percentuais do PIB: o "corte" de R$ 50,1 bilhões é, na verdade, um aumento de gastos de R$ 74 bilhões! O que explica esse paradoxo?

Para calcular o tamanho do ajuste fiscal, o Governo tomou como ponto de partida o valor da despesa total aprovado no orçamento. E fez uma programação para cortar esse orçamento. Ocorre que, no Brasil, os orçamentos são tipicamente inflados e não são executados exatamente como aprovados. Durante sua tramitação no Congresso, novas despesas são incluídas, lastreadas em reestimativas otimistas da receita.

Para lidar com esse problema, o poder Executivo tem a prerrogativa de "contingenciar" (bloquear) determinadas despesas, impedindo que elas ocorram. As despesas são descontingenciadas apenas à medida que a arrecadação cresce, o que permite manter o controle do déficit público. Ou seja, o orçamento é uma simples autorização para que o Executivo gaste, e não uma determinação para que ele gaste.

Daí se conclui que o valor total da despesa que consta no orçamento é um montante inflado, que já se prevê, a priori, que não será totalmente realizado. E foi esse número inflado que o governo tomou por base para fazer o corte de R$ 50,1 bilhões.

Se o objetivo do governo é reduzir a pressão que os gastos públicos fazem sobre a demanda agregada, então a base de comparação correta deve ser o gasto efetivamente realizado em 2010: é preciso reduzir o gasto realizado, em proporção do PIB, em 2011 em comparação com o também realizado em 2010.

Além disso, se o que se pretende é fazer o ajuste por meio da elevação do superávit primário, então é forçoso que se trabalhe com o gasto efetivamente realizado (o chamado "conceito de caixa"). E aqui entra outro detalhe técnico. A despesa pública se processa em três estágios: o empenho (promessa de pagamento), a liquidação (a ordem de pague-se, dada quando se constata que o produto foi entregue ou o serviço foi prestado) e o efetivo pagamento. Tal pagamento, muitas vezes, é postergado para o ano seguinte.

O efetivo desembolso de recursos do governo em um determinado ano ("critério de caixa") é a soma da "despesa paga" (despesas do ano pagas no próprio ano) com os "restos a pagar pagos" (despesas de anos anteriores que foram efetivamente pagas no ano em curso).

A tabela acima, extraída de outro estudo do autor, mostra, na coluna (A), que se pretende despender R$ 665 bilhões em 2011 após os cortes orçamentários anunciados. A coluna (B) apresenta a despesa efetivamente realizada em de 2010: R$ 591 bilhões.

Se o Executivo conseguir, efetivamente, manter as despesas dentro dos limites propostos, elas somarão 16,4% do PIB em 2011. Esse montante seria 0,3 pontos percentuais do PIB maior que a despesa de 2010. Em termos nominais a despesa cresceria R$ 74 bilhões ou 12,6%. Ou seja, o ajuste fiscal é, na verdade, um aumento de despesa.

Pode-se até argumentar que o pacote foi importante para evitar crescimento ainda maior da despesa. Mas não se pode dizer que se tem um ajuste suficiente para conter a demanda agregada a ponto de amenizar as pressões inflacionárias.

Quando se analisa o rol de medidas administrativas voltadas para a contenção de gastos fica patente a limitação do ajuste fiscal.

Foram prometidas auditorias para corrigir erros e fraudes. A menos que já exista informação interna ao poder Executivo acerca de fraudes, esse tipo de medida não parece capaz de gerar grandes economias. Soa arbitrário, por exemplo, fixar uma redução de gastos da ordem de R$ 2,1 bilhões com seguro-desemprego e abono salarial apenas na base de "combate a desvios".

Anunciou-se, também, o adiamento de despesas (por exemplo, postergação de concursos públicos). Adiar despesas não é fazer ajuste fiscal consistente. É apenas empurrar o problema para o próximo ano.

Fixaram-se restrições a gastos com diárias, passagens, aluguel e aquisição de imóveis. Esta parece ser a única medida concreta de contenção de gastos. Mas, infelizmente, é insuficiente. Em 2010, de acordo com dados do SIAFI, elas somaram apenas R$ 3,8 bilhões (despesa liquidada). Uma economia de 50% nesses itens levaria a uma inexpressiva redução de gastos de R$ 1,9 bilhão.

Só é possível usar a despesa pública para fazer política contracíclica quando a despesa não é rígida, podendo ser aumentada ou diminuída substancialmente de um ano para outro. Esse não é o caso brasileiro. Aqui só é possível fazer ajustes abruptos para cima. Na hora de cortar, a despesa é rígida. A causa disso é conhecida: aumentos reais do salário mínimo impactam o gasto da previdência e de diversos programas sociais, a despesa da saúde cresce obrigatoriamente no mesmo ritmo do PIB, a estabilidade dos servidores públicos e o crescimento vegetativo da folha de pagamento tornam o gasto de pessoal inflexível para baixo, há vinculação de recursos para estados e municípios e para a educação.

Somente o reajuste do salário mínimo em 2012, previsto para aproximadamente R$ 625,00, representará, de acordo com projeções de especialistas em previdência e assistência social, um aumento de despesa de mais de R$ 20 bilhões. Haja combate a fraude e corte de diárias para contrabalançar essa avalanche!

Marcos Mendes é doutor em Economia IPE/USP.