Título: Os efeitos da privatização: o caso da Vale
Autor: Carrasco, Vinicius; Mello, João Manoel Pinho de
Fonte: Valor Econômico, 26/03/2011, Opinião, p. A14

Inferir os efeitos da introdução de gestão privada no desempenho de uma empresa não é tarefa fácil. Exige um exercício contra-factual: qual seria o retorno da empresa privatizada tivesse ela permanecido sob controle estatal?

Se empresas de um mesmo setor fossem privatizadas aleatoriamente, compararíamos os retornos das empresas privatizadas com os das públicas; como fazem pesquisadores de um laboratório farmacêutico ao testar nova droga, trabalhando, de forma controlada, com dois grupos: tratamento e controle. Para o bem ou para o mal, o acesso a tais experimentos em ciências sociais é limitado. Empresas não são privatizadas aleatoriamente.

De fato, o setor privado tem mais interesse por empresas mal geridas, pois os ganhos com a troca de controle são maiores. Assim, a melhora na gestão pode ocorrer por reversão à média (como diria o Tiririca, "pior do que está não fica"), ou porque a gestão privada é mais eficiente.

Tomemos o caso da Vale. Ao analisar seus retornos nos últimos anos, a primeira impressão é que a privatização melhorou muito seu desempenho. Entre junho de 1997 e janeiro, o American Depositary Receipt (ADR, recibo representação da ação) da Vale proporcionou um retorno nominal em dólar (incluindo distribuição de dividendos) de incríveis 3.019%.

No entanto, no mesmo período, seu principal produto, o minério de ferro, se valorizou em decorrência do aumento da demanda da China. Entre 2003 (primeiro ano para o qual há dados disponíveis) e 2010, o preço do minério de ferro CIF na China subiu 750%, tendo a maior parte desse aumento ocorrido a partir de 2005 quando o retorno da Vale se acentua. Como o aumento do minério não tem relação com a privatização, parte do retorno não pode ser atribuída à troca de gestão.

A privatização explica a diferença entre os 3.019% de retorno e a apreciação de 750% no preço do minério? A quantidade produzida aumentou 70% entre 2003 e 2010. Para evitar qualquer alegação de que nossas conclusões dependem disso, faremos a suposição heroica de que a privatização em nada contribuiu para o aumento de sua produção. Ou seja, a capacidade adicional já estaria disponível ou seria facilmente adicionada mesmo sob controle estatal.

Também para simplificar a argumentação, suporemos que o custo unitário subiu proporcionalmente com o preço. Assim, a margem aumentaria os mesmos 750%. Nesse caso, o lucro da Vale subiria 1.345%, contando com o aumento de 70% na quantidade. Ou seja, há uma diferença substancial de 1.674 pontos percentuais não explicada. Portanto, o custo unitário não aumentou tanto quanto o preço. Será que foi a gestão privada? Ou ganho de escala?

Um ciclo virtuoso pode ter ocorrido na empresa. Uma diminuição de custo de produção e aumento de demanda da China

Na ausência de experimentos controlados, emulamos o que seriam grupos de tratamento e controle. As três maiores empresas de mineração são listadas em bolsas de valores: BHP, Rio Tinto (Rio) e Vale. As duas primeiras sempre foram privadas. Já a Vale foi privatizada em 1997. A Rio é mais comparável à Vale por ter exposição ao minério de ferro maior do que a BHP (62% versus 34% da margem Ebitda em 2010). A lógica do argumento para inferir o efeito da gestão privada na Vale é simples: a Rio tem alta exposição ao minério, cujo preço é formado internacionalmente. Portanto, serve de "grupo de controle" para o experimento "privatização da Vale".

Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, a diferença nos retornos da Vale e da Rio é de 1.696 pontos percentuais (em sites.google.com/site/joaompdemello/opeds, há o gráfico com a evolução dos retornos das respectivas ADRs de 1995 a 2011). O que explica essa diferença?

Antes da privatização, o retorno da Rio foi maior do que o da Vale. Portanto, a diferença não é explicada por diferentes tendências pré-privatização.

O frete transoceânico aumentou 400% entre setembro 2005 e setembro de 2008. Como Austrália é mais perto da China, o aumento no preço do frete prejudica mais o lucro da Vale. A exposição da Rio ao minério de ferro é menor, mas, com a operação de cobre, as exposições agregadas em cobre e ferro são parecidas e o preço do cobre subiu tanto quanto o do minério.

Os principais ativos da Vale, Carajás e Minas, têm em média qualidade parecida com os ativos da Rio. Logo, quaisquer potenciais ganhos de escala obtidos serão parecidos para ambas empresas.

Os múltiplos pagos por empresas brasileiras aumentaram porque o Brasil melhorou institucionalmente; como Austrália já era um país organizado em 1997, os múltiplos não aumentaram muito por lá. Por isso o Ibovespa subiu mais do que o AUS 200 (principal índice australiano), e isso não é mérito da privatização da Vale. Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, o Ibovespa teve um retorno real de 210%, contra 28% do AUS 200. Ou seja, 182 pontos percentuais da diferença se devem à melhoria do Brasil em relação à Austrália.

A explicação que resta para os impressionantes 1.514 pontos percentuais de diferença de retorno é a privatização, a mudança que afetou apenas a Vale. Por fim, considerando apenas o período "pré-China", a diferença entre os retornos de Vale e Rio foi de 231 pontos percentuais.

Por que os benefícios da privatização foram amplificados durante o boom? Primeiro, as melhorias de gestão levam tempo. Segundo, uma diminuição no custo de produção é mais valiosa quando há aumento de quantidade vendida. Um ciclo virtuoso pode ter ocorrido na Vale: diminuição de custo de produção e aumento de demanda da China. Em reação à elevação de preço e à redução do custo de produção, a quantidade aumentou, o que, por sua vez, amplificou o benefício do aumento de margem causado pela queda no custo marginal. Por já ser privada, o ciclo virtuoso da Rio não foi amplificado pela diminuição de custos.

Estabelecer relações causais em ciências sociais é missão espinhosa. Tendo essa ressalva em mente, a evidência disponível sugere que a gestão privada adicionou enorme valor à Vale. Não é demais lembrar que tais ganhos de gestão foram, em grande parte, apropriados pelo contribuinte por meio de tributos e da participação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Previ (por meio da geração de superávits reconhecidos no resultado do Banco do Brasil) na Valepar.