Título: Lei da Ficha Limpa ainda terá longas batalhas pela frente
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2011, Opinião, p. A14

A Lei da Ficha Limpa caiu no buraco negro do Judiciário, de onde terá alguma sorte se escapar sem ser inteiramente desfigurada. A votação realizada pelo Supremo Tribunal Federal, que a considerou inaplicável às eleições de 2010, não examinou méritos e pontos obviamente questionáveis que irão voltar à Corte mais à frente. Tem razão um dos ministros ao apontar a possibilidade de que a lei seja contestada alínea por alínea, sem que tenha aplicação sequer para os próximos pleitos.

Iniciativa popular, aprovada rapidamente pelo Congresso, a Lei da Ficha Limpa é uma tentativa de fazer aquilo que os partidos, o Congresso e a própria Justiça não estão fazendo - impedir que políticos corruptos ou envolvidos em crimes de várias naturezas possam se candidatar. Anseio legítimo, a busca desse atalho choca-se com um poderoso sistema em que a procrastinação faz parte de um jogo perverso que, no final, só beneficia a quem deve contas à Justiça. Se a Justiça não é tempestiva, isso corresponde à sua denegação. É o que ocorre há décadas com ocupantes de cargos eletivos e, em geral, com todos os que não dispõem de caros e bons advogados.

O Judiciário é o último e mais importante elo de um sistema que trabalha contra a punição de infratores poderosos. O filtro natural e primeiro de quem busca um cargo eletivo são os partidos, mas eles parecem ter definitivamente desistido de qualquer preocupação com o bem público. Não apenas a seleção não é feita, como as próprias legendas se embrenham na zona da ilegalidade dos financiamentos de campanha por baixo do pano. É nela em que é feito algum tipo de peneira dos quadros partidários, que saem das urnas com interesses determinados menos por seus eleitores que pelos de seus financiadores.

Já no Congresso ou nas assembleias estaduais, o esforço corretivo de condutas inadmissíveis é irrisório, ou inexistente, ou pior, uma mal ajambrada mise-en-scène para impedir que haja punições. Comissões de ética mambembes, cujos presidentes frequentemente estão também sob suspeitas, produzem despistes. Uma vez eleito, o político passa a fazer parte de uma corporação em que vale o mote de não punir para jamais ser punido.

Resta o Judiciário, que não desempenha a contento suas funções porque está soterrado por milhões de processos produzidos por uma legislação cheia de lacunas, apesar de detalhista, e ritos processuais bizantinos que estimulam todo tipo de recurso em todas as instâncias - quatro no Brasil. Uma infinidade de assuntos vão parar no STF, o guardião da Constituição, e sua capacidade de agir na hora certa, na política, para se restringir a essa área, não é grande. Agora, por exemplo, a acusação de crime de formação de quadrilha contra os réus do mensalão está para caducar em agosto e dificilmente eles serão julgados até lá.

No caso da Ficha Limpa, houve o atraso do governo em indicar um membro para o Supremo, além do empate em discussões. O resultado foi a criação de uma balbúrdia em todos os pleitos estaduais e federais, pois havia indicações legais diferentes sobre se a lei estava valendo ou não em 2010. Desfeito o impasse com o voto do ministro Luiz Fux, pela inaplicabilidade na última eleição, mais de duas dezenas de processos de pessoas atingidas pela inabilitação terão de ser considerados um a um, e o quociente de representação dos partidos recalculados em grande parte do país.

A indignação levou a Ficha Limpa como expediente rápido para punir os políticos que transgridem as leis. Há sérios riscos de que boa parte de seus artigos caia por ferir a Constituição ou o entendimento que dela faz o STF. É muito difícil que a presunção de inocência, ou seja, a de que alguém só é considerado culpado depois de sentença transitada em julgado, caia, derrubando um dos principais princípios definidores da ficha suja - a condenação por um órgão colegiado da Justiça. Há vários outros pontos jurídicos espinhosos, como o da validade da punição para crimes ocorridos antes da vigência da lei, ou a definição de quais crimes seriam passíveis de "sujar" a ficha dos candidatos.

É inevitável que a Lei da Ficha Limpa sofra adaptações e, do litígio, nasçam regras melhores para moralizar a política. Mas sem mudanças nos ritos processuais e uma maior celeridade do Judiciário, a própria lei será um paliativo e nada de muito decisivo ocorrerá.