Título: Duas visões a respeito do regulador bancário brasileiro
Autor: Salama, Bruno
Fonte: Valor Econômico, 12/04/2011, Opinião, p. A14

A crise financeira internacional e suas repercussões no Brasil nos fazem lembrar da peculiar sabedoria de John F. Kennedy, segundo a qual ¿o sucesso tem muitos pais, mas o fracasso é órfão¿. Ao mesmo tempo em que a Europa e os Estados Unidos entravam em uma espiral de crise financeira, o Brasil consolidou sua posição de potência emergente. Os economistas vão se debater por muitos anos para explicar a ascensão brasileira, mas uma coisa, mais prosaica, é bem certa: todos os agentes políticos vão continuar lutando para capturar a paternidade dos sucessos. Tal é a natureza da política.

O regulador bancário brasileiro não é exceção. O desenrolar da crise mostrou que o Brasil se beneficiou de uma série de medidas adotadas que dificultaram a expansão de derivativos, a aquisição de ativos ¿tóxicos¿, a alavancagem (isto é, o excessivo endividamento dos bancos) e a inovação financeira de um modo geral. A prudência do regulador brasileiro teria, então, poupado os contribuintes brasileiros de terem que embarcar em caríssimas operações de salvamento de bancos à deriva e à beira do naufrágio. A narrativa heroica proposta pelo nosso establishment é a do regulador bancário como a um só tempo visionário e prudente; modernizante porém infenso a modismos liberalizantes.

Esta narrativa heroica constrói-se também por comparação. Contrasta-se o regulador brasileiro com o regulador americano. Este último tido como ingênuo por acreditar no ¿laissez faire¿, moralmente corrupto por render-se à pressão espúria da indústria bancária, e irresponsável por não responder por seus erros.

Não se nega que o Brasil tenha se beneficiado de ter um sistema financeiro livre de ativos tóxicos. Mas aqui quero lembrar ao leitor incauto de que há uma outra forma de se enxergar esses mesmos fatos.

Há uma narrativa anti-heroica que traduz-se essencialmente no seguinte. Com os juros altos que aqui vigoram, simplesmente não houve pressão política dos bancos para que o regulador lhes autorizasse a realizar peripécias e inovações financeiras. Aqui os malabarismos financeiros não ocorreram ¿ mas também não foram necessários! No Brasil, bastou aos bancos realizarem a atividade monótona de tomar dinheiro a ¿x¿, e emprestar dinheiro a ¿x + y¿, para chegarem a taxas de rentabilidade compatíveis com aquelas de seus pares estrangeiros malabaristas.

Há uma outra forma mais provocadora de dizer-se a mesma coisa. Nos Estados Unidos, o subsídio governamental aos bancos veio ex-post facto. Vale dizer, depois da quebra, veio o dispêndio de recursos governamentais para o salvamento bancário. No Brasil, o subsídio também veio, mas disfarçado e ex-ante facto. Foi depositado mês a mês, em cada rolagem de dívida, com o governo brasileiro inflando os lucros dos bancos na forma de juros altos. Ou seja: nos EUA, o cidadão pagou a conta na saída e depois de usar. No Brasil, o pagamento foi parcelado no crediário da política do subsídio a conta-gotas.

Por sinal, no Brasil nem sempre tivemos juros altos. Nos idos tempos da inflação, os juros reais pagos pelo Tesouro eram menores. Nem por isso, contudo, os bancos deixavam de ser subsidiados. O subsídio, contudo, vinha por uma forma curiosa, o chamado lucro inflacionário. Para quem já se esqueceu, no pagamento de cada carnê bancário os recursos ¿dormiam¿ na conta dos bancos durante alguns dias. Os bancos podiam, então, aplicar esses recursos no chamado overnight e reter os juros. Era realmente bastante monótono; mas igualmente seguro e igualmente rentável!

Essa visão anti-heroica do regulador brasileiro nos conduz a três generalizações importantes.

Primeiro, a tomada de decisões em um dado momento é limitada por decisões e eventos ocorridos anteriormente. A política de juros altos não é simplesmente uma decisão isolada, mas faz parte de um contexto bem mais amplo historicamente ligado ao descontrole dos gastos públicos no Brasil. O cobertor é curto, as necessidades são muitas, e a voracidade daqueles que têm acesso às tetas do Estado continua a mesma de sempre. Os nossos nobres legisladores e seus polpudos aumentos de salário nos fazem lembrar disso, dia após dia. Generalizando, pode-se ficar com a observação de que o exercício de se pensar o ¿para aonde vamos¿ só tem sentido se pudermos compreender minimamente também o ¿de onde viemos¿.

Segundo, já está mais do que na hora de se abandonar a visão da regulação como ¿ciência¿, substituindo-a pela visão da regulação como ¿arte¿. Há uma dinâmica dialética de provocação recíproca entre regulado e regulador. As ações de um levam a contra-movimentos do outro, gerando novas ações do primeiro, e assim por diante. A regulação não é como uma dança de um casalzinho, dois pra lá, dois pra cá, todo mundo no mesmo ritmo e sem pisar no pé do outro. A relação entre regulador e regulado é diferente. Há dependência, porque se o regulado quebra, a política jogará a culpa nos ombros do regulador. Mas relação é de provocação e resposta, sempre criativa de parte a parte, em um jogo infinito limitado só pela critiavidade humana. Nesse ponto, o Brasil não difere em nada do resto do mundo.

Terceiro, a regulação é cheia de armadilhas. Por exemplo, nas propostas de reforma regulatória mundo afora, muito se tem falado em tornar as finanças mais monótonas. O que se quer é evitar o financista malabarista, substituindo-o pelo probo e conservador prestamista. Mas até a monotonia financeira esconde as suas armadilhas. A experiência brasileira com juros altos é ilustrativa nesse sentido. Ela serve, também, para nos lembrar que é sempre bom manter uma pontinha de ceticismo diante dos discursos heroicos.

Bruno Meyerhof Salama é professor de Regulação Bancária da Direito GV.