Título: A desindexação interrompida
Autor: Safatle , Claudia
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2011, Brasil, p. A2

Após quase 16 anos da Medida Provisória 1.053, editada um ano depois do Plano Real para desindexar a economia, o vírus da indexação - que transporta para o futuro a inflação passada - permanece vivo e sob alto risco de disseminação. Cerca de 30% da variação do IPCA de hoje ainda é influenciada pelos aumentos de preços de ontem e a permanência de dois anos de inflação alta - 5,91% em 2010 e 5,6% em 2011 (conforme projeção do Banco Central) - é um incentivo à busca dessa proteção.

Depois da iniciativa da MP de julho de 1995 - que proibiu o uso da correção monetária ou de índices de reajustes de preços em todos os contratos de até um ano e estabeleceu a livre negociação para os salários - os governos se desobrigaram da tarefa de desmontar os mecanismos subsistentes de correção de preços baseado nos índices passados.

Em 2007, o então presidente Lula propôs uma superindexação do salário mínimo - reajustado anualmente pela inflação do ano anterior e pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores - com duração até 2011.

Este ano, uma das primeiras medidas da presidente Dilma Rousseff foi prorrogar os termos da negociação de Lula com as centrais sindicais, de valorização do salário mínimo, para até 2015. Desta vez, porém, a regra assustou os mercados porque resultará num aumento de dois dígitos para o salário de 2012. O forte crescimento do PIB em 2010, de 7,5%, que há muito ficou para trás, será a referência para o reajuste do piso salarial. Percentual que acrescido do INPC (em geral superior à variação do IPCA) deste ano, deve resultar num aumento de cerca de 14%, justamente num momento em que o governo estará em plena batalha pelo controle da inflação.

Embora o BC assegure que considerou o aumento do salário mínimo nas contas para fixar a meta de inflação de 4,5% para 2012, no mercado persistem as dúvidas.

Em seguida, o governo fixou a correção da tabela do Imposto de Renda, que será de 4,5% até 2014, mesmo indicador da meta de inflação, em mais um gesto em direção à indexação.

A lei 8.177, do Plano Collor, de março de 1991, que antes do Plano Real também tentou patrocinar o fim do instituto da correção monetária, manteve o rendimento da caderneta de poupança atrelado à variação da Taxa Referencial (TR) mais 6,17% de juros remuneratórios ao ano. Quando a taxa básica de juros caiu para a casa dos 8,75% ao ano, o governo Lula esbarrou na remuneração da poupança como piso para a queda da Selic. Para não ter um enfrentamento político com o Congresso, ele buscou uma equação temporária e deixou o problema para uma solução futura.

Boa parte dos preços administrados e monitorados - responsáveis por cerca de 29% do IPCA, tem algum tipo de reajuste anual indexado a índices de preços.

Após tantos anos de estabilização, os mecanismos de indexação ainda subsistem como instrumentos de defesa da sociedade contra a inflação. E só tenderão a desaparecer quando a taxa de inflação for baixa o suficiente para não afetar as decisões dos agentes econômicos.

Nos 12 anos de vigência do regime de metas para a inflação, o fato é que em apenas três anos a variação do IPCA ficou abaixo de 4,5%: em 2006 (IPCA de 3,14%), em 2007 (4,46%) e em 2009 (4,31%).

Nos dois primeiros anos de Lula, o Banco Central trabalhou com metas de inflação ajustadas, de 8,5% em 2003 e de 5,5% em 2004 e nos anos seguintes manteve a meta em 4,5% ao ano, com 2 pontos de margem de tolerância, podendo, portanto, chegar a 6,5% em casos de choques de oferta. Índice considerado elevado para incentivar o alongamento dos prazos dos contratos e o fim das cláusulas de correção por índices de preços nas negociações privadas.

Enquanto o governo não ousar no processo de desinflação, a indexação continuará como um mecanismo que há mais de 40 anos está alojado no arcabouço institucional da economia brasileira. E que pode ser reavivado sempre que a sociedade se sentir ameaçada pela inflação, assim como o fizeram as centrais sindicais ao exigirem do governo a correção do salário mínimo pela inflação e pelo crescimento do produto passados.

"O avanço em direção ao nominalismo deve ser um esforço conjunto e coordenado de toda a sociedade", dizia a exposição de motivos que acompanhava a medida provisória da desindexação, em 1995. Naquela ocasião, a MP deu um passo inicial, importantíssimo, para a plena restauração do padrão monetário do país.

Esquecida desse tipo de bandeira, a elite política do país nunca dispôs a patrocinar nem ensaiou apoiar qualquer discussão mais séria sobre isso, deixando a desindexação e, portanto, o processo de estabilização da economia, como uma obra inacabada.

Claudia Safatle é diretora de redação adjunta e escreve às sextas-feiras