Título: À luz do dia, um novo ciclo embala a Amazônia
Autor: Chiaretti , Daniela
Fonte: Valor Econômico, 18/04/2011, Especial, p. A14

Parintins tem vida noturna agitada. No galpão vermelho e no adversário de cor azul, dançarinos e músicos treinam a coreografia da festa mais famosa da região, a dos bois Caprichoso e Garantido. O aeroporto, a 3 km de um lixão, segue rotina de vampiro: só funciona quando o Sol se põe e a megapopulação de urubus vai dormir.

Na Lagoa da Francesa, a poucos metros do Rio Amazonas, barcos vêm e vão durante a madrugada. Mal se vê a silhueta das barcaças e algumas se traem na escuridão porque mugem: são os rebanhos sendo carregados das várzeas para terras mais altas quando a água do rio começa a subir. É de noite, também, que homens entram na mata, cortam árvores e saem carregando tábuas nas costas, quietos e rápidos, para fugir ao flagrante. Tem sido assim por anos. Mas agora há uma diferença evidente na floresta: muita gente por aqui quer sair da ilegalidade e trabalhar à luz do dia. Este movimento começa a configurar um novo ciclo na vida da Amazônia.

É a fase em que a lógica do desmatamento como justificativa ao "progresso" começa a ser superada na floresta e a ideia é trilhar caminhos mais sustentáveis. Não que todos pensem assim, mas são muitos os que querem sair da clandestinidade. Esta dinâmica em curso é movida por centenas de pequenos produtores de madeira e extrativistas de outros recursos naturais. A má notícia é que a máquina está viciada e emperrou na regularização fundiária. Para quem vive modestamente ou na linha da pobreza, trabalhar legalmente na Amazônia fica na intenção, mesmo que o sujeito queira o contrário.

"Tenho o maior orgulho dessas portas que fizemos", diz Paulo Moisés Ismael da Silva apontando para peças de ipê no restaurante do melhor hotel da cidade. Ele é tesoureiro da Amopi, associação que reúne 50 fabricantes de móveis em Parintins. O ofício é legado de imigrantes italianos carpinteiros trazidos há 50 anos por dom Arcângelo Cerqua, o bispo que alavancou a cidade, construiu a catedral e virou lenda. Mas o caminho da madeira até o hotel é também aquele do confessionário.

Edgar Lima da Silva, o presidente da associação, conta que os homens entram na mata na madrugada, escolhem seu cedro ou angelim, fatiam a madeira e saem com ela pelas picadas até a canoa amarrada no igarapé, bem calados para fugir da fiscalização. De vez em quando sofrem também pressão das grandes serrarias, que estão a 80 km dentro da floresta "e saem comprando toda a madeira da região." Os "grandes", como eles dizem, pagam R$ 50 a R$ 60 "uma árvore". Em média, uma árvore dá 6 a 7 metros cúbicos de madeira. Dependendo da espécie, o m³ é vendido a R$ 700 em São Paulo.

Os dois moveleiros de Parintins foram recentemente a Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, com o apoio do Sebrae, para ver as novidades de uma feira do setor. Reconheceram madeiras da Amazônia por toda a cidade e observaram que seus equipamentos estão "60 anos atrasados". "A nossa reivindicação é que se legalize a pequena propriedade, que possamos fazer plano de manejo e valorizar o nosso produto", resume o Silva presidente. "A gente não consegue nem exportar", continua, referindo-se a vender para outros Estados. "Queremos crescer. Na clandestinidade não dá." Na manhã da sexta-feira, na ilha de Parintins, perto da fronteira do Amazonas com o Pará, a ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira e representantes do primeiro escalão da Pasta, escutaram a mesma história, com mínimas variações, de dez homens e mulheres reunidos em evento promovido pelo Fórum Amazônia Sustentável (FAS).

Durante o "Grande Encontro em Defesa da Floresta" cerca de 500 extrativistas do Amapá, Acre, Amazonas e Pará colocaram suas dificuldades para viver da floresta com qualidade de vida e sem destruir. Ribeirinhos e seringueiros, coletores de castanhas e de óleos aromáticos, mulheres com relatos de perdas e danos, todos disseram querer sair da clandestinidade. Mas são abatidos por uma rede de obstáculos que começa com a falta do título de terra.

Sem a regularização fundiária não se aprova plano de manejo, não tem crédito no banco e nenhuma atividade legal prospera. As comunidades da floresta ficam condenadas à exclusão e a mata corre perigo. "A Amazônia está dando uma resposta positiva no combate ao desmatamento. Agora temos que mostrar que a floresta tem valor, que pode dar dinheiro e ajudar a tirar o pessoal da miséria", diz Antonio Carlos Hummel, diretor geral do Serviço Florestal Brasileiro.

O problema é que tudo isso é muito novo, inclusive para o governo, que reconhece suas falhas. "Mas a coisa precisa ganhar escala. Estamos começando a perder para a pecuária", diz Rômulo Mello, presidente do Instituto Chico Mendes, referindo-se a dar valor à floresta em pé. "Por enquanto, a pata do boi é mais eficiente e tem mais liquidez."

Não que a coisa seja simples. O Instituto de Terras no Amazonas (Iteam), por exemplo, tem nove técnicos para trabalhar em 62 municípios. "Regularizar terras na Amazônia não é como em São Paulo", explica Felismar Mesquita, diretor geral do Instituto de Terras do Acre. Para fazer a marcação da propriedade usando o GPS geodésico, não pode haver cobertura florestal em um diâmetro de 60 metros, em cada ponto que delimita a propriedade. O equipamento envia sinais ao satélite e com árvores ou nuvens, o sinal não chega. Então, para proteger a Amazônia, tem que derrubar árvores - o que é um contrasenso. Cada marco colocado nos pontos pesa 15 kgs. As equipes são pequenas e o trabalho, enorme.

O Terra Legal, programa federal que regulariza terras públicas não consolidadas (não trabalha em unidades de conservação ou em terras indígenas, por exemplo) vem avançando, mas devagar. Shirley Nascimento, secretária interina do Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, diz que já há 10 mil parcelas medidas e em processo e 196 equipes em campo na Amazônia. Os trabalhos se iniciaram com um estoque de 59 milhões de hectares e o volume caiu para 47 milhões. "Vamos entregar 5 mil títulos até julho e queremos que sejam 15 mil no ano". Desde junho de 2009, quando o programa começou, foram entregues 611 títulos rurais e 48 urbanos.

Os pequenos produtores que conseguem vencer o primeiro obstáculo encontram logo o segundo. Para tirar madeira de modo legal na Amazônia tem que ter plano de manejo. A técnica consiste em se cortar algumas árvores de um pedaço da floresta de acordo com critérios técnicos como o diâmetro do tronco, idade, espécie e frequência e voltar ali 30 anos depois, dando tempo para que a floresta regenere. Uma comunidade na Amazônia que queira fazer seu plano de manejo forma uma associação, chama um engenheiro florestal, aguarda a visita, marca as árvores, faz o plano e espera pela aprovação do órgão ambiental.

"O problema é que o técnico nunca mais volta. Não há resposta. Como a pessoa vai sobreviver estes anos enquanto espera?" diz Guilherme Moura, fundador da Associação de Pequenos Extratores de Madeira de Parintins e um dos primeiros a usar motoserra na região. "Só eu desmatei uma imensidade de mata", diz o hoje pastor de igreja evangélica. "Mas hoje é difícil, para o pequeno, sair da ilegalidade."

"Nossa pauta agora é saber porque não acontece o manejo na Amazônia", diz Rubens Gomes, presidente do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), que reúne 600 organizações de comunidades amazônicas. Ele cita também a sobreposição de órgãos estaduais e federais como entrave para dar inclusão social aos povos da floresta. "O Brasil abre mão de uma economia grandiosa porque não se organiza, cria uma população desassistida e dá alimento à cadeia de corrupção".

Izabella Teixeira ouviu atenta a romaria de queixas. "Não escutei ninguém pedir para dar um jeitinho, como era há 20 anos. Todo mundo aqui quer atuar legalmente", registrou, comprometendo-se com soluções. Ela anunciou uma portaria do Instituto Chico Mendes, em consulta pública, que procura facilitar o processo do manejo florestal comunitário. Eles não precisam mais contratar engenheiros florestais e fazer o inventário de suas árvores, por exemplo. "Sem os povos da floresta nós não temos floresta", continuou. "É um absurdo o Brasil ter a maior floresta do mundo e a economia florestal só responder por 4% do PIB".

"A lógica de 20 anos atrás, de desenvolver pelo desmatamento, mudou", diz Adriana Ramos, secretária executiva do Fórum Amazônia Sustentável (FAS). A valorização da biodiversidade e do modo de vida tradicional das populações, além da política de crédito estar ligada à ficha ambiental de quem pede financiamento, estaria revertendo o quadro. "Mas o governo não conseguiu suprir suas próprias deficiências de falta de pessoal, de controle político e até de falta de vontade de arbitrar alguns conflitos", registra. "Mas há avanços, estão sendo feitos passos. Só que ainda são poucos."