Título: O fantasma de Bin Laden
Autor: Yamani , Mai
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2011, Opinião, p. A15

A morte de Osama bin Laden em seu esconderijo paquistanês é como a remoção de um tumor do mundo muçulmano. Mas uma agressiva terapia de acompanhamento será necessária para impedir uma metástase das células remanescentes da Al Qaeda na forma de aquisição de mais adeptos que acreditam na violência para alcançar a "purificação" e o fortalecimento do Islã.

Felizmente, a morte de Bin Laden acontece no momento exato em que grande parte do mundo islâmico está sendo convulsionado pelo remédio que o tipo de fanatismo de Bin Laden necessita: a primavera árabe, com suas exigências de fortalecimento democrático (e a ausência de demanda, pelo menos até agora, do tipo de governo islâmico que a Al Qaeda tentou impor).

Mas poderão as democracias nascentes que estão sendo construídas no Egito e na Tunísia, e buscadas no Barein, Líbia, Síria, Iêmen e em outros lugares, extirpar as ameaças de extremistas islâmicos? Em particular, podem elas derrotar o pensamento salafista e wahhabita que de longa data alimentaram Osama bin Laden e seus asseclas e que continua a ser a ideologia professada e protegida da Arábia Saudita?

O fato é que, antes da operação dos EUA para matar Bin Laden, comandante simbólico da Al Qaeda, as emergentes revoluções democráticas árabes já tinham, em apenas poucos meses, conseguido marginalizar e debilitar seus movimentos terroristas no mundo islâmico mais do que a guerra ao terror tinha conseguido em uma década. Essas revoluções, independentemente do seu resultado final, desnudaram a filosofia e o comportamento de Bin Laden e de seus seguidores não apenas como ilegítimo e desumano, mas como efetivamente inepto para alcançar melhores condições para o cidadão muçulmano comum.

O que milhões de árabes estavam dizendo, ao manterem-se unidos em protesto pacífico, foi que sua forma de obter dignidade árabe e islâmica é muito menos custosa em termos humanos. Mais importante, o caminho que tomaram finalmente alcançará o tipo de dignidade que as pessoas realmente querem, ao contrário das intermináveis guerras terroristas para reconstrução do califado prometido por Bin Laden.

Essas revoluções, independente do seu resultado, mostraram que a filosofia e o comportamento de Bin Laden e seus seguidores não são apenas ilegítimos e desumanos, mas efetivamente ineptos para alcançar melhores condições para o cidadão muçulmano comum.

Afinal de contas, os manifestantes da Primavera Árabe não precisam usar - e abusar do - Islã para alcançar seus fins. Eles não esperaram que Deus mudasse sua condição, e sim assumiram a iniciativa enfrentando pacificamente seus opressores. As revoluções árabes assinalam o surgimento de uma bandeira pluralista, pós-islamista, para os fiéis. Com efeito, as únicas pessoas que introduziram a religião nos protestos foram os governantes, como os do Bahrain, Iêmen, Líbia e Síria, que tentaram usar o medo do "outro" - xiita ou sunita - para continuar a dividir e "desgovernar" suas sociedades.

Agora que os EUA erradicaram a presença física de Bin Laden, precisam parar de retardar o resto do processo terapêutico. Pois os EUA, míope e seletivamente -erradicaram apenas partes do câncer representadas pela Al Qaeda, deixando o tumor maligno do wahabismo e do salafismo árabes intocados. Com efeito, apesar da década de guerra do Ocidente contra o terror, e da aliança de mais longo prazo da Arábia Saudita com os EUA, o establishment religioso wahhabita no Reino continuou a financiar ideologias extremistas islâmicas ao redor do mundo.

Bin Laden, nascido, criado e educado na Arábia Saudita, é um produto dessa ideologia. Ele não era um inovador religioso, mas sim produto do wahabismo - e posteriormente exportado pelo regime wahhabita como jihadista.

Durante a década de 1980, a Arábia Saudita gastou US$ 75 bilhões na propagação do wahabismo, financiando escolas, mesquitas e instituições de caridade em todo o mundo islâmico: do Paquistão ao Afeganistão, no Iêmen, na Argélia e em outros países. Os sauditas continuaram tais programas após os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 e mesmo depois de terem descoberto que o apelo por mudanças é incontrolável, devido às tecnologias da globalização. Não é de surpreender que a criação de um movimento político islâmico transnacional, impulsionado por milhares de sites jihadistas subterrâneos soprou de volta contra o reino.

Assim como os sequestradores do 11 de setembro, que também eram produtos de exportação ideológica saudita/wahhabita (15 dos 19 homens que realizaram os ataques terroristas foram escolhidos por Bin Laden porque compartilhavam a mesma ascendência e educação saudita que ele), o exército de reserva de potenciais terroristas continua disponível, porque a fábrica wahhabita de ideias fanáticas permanece intacta.

Portanto, a verdadeira batalha não vem sendo travada contra Bin Laden, mas contra essa fábrica ideológica incubada pelo Estado saudita. Bin Laden apenas refletia a enraizada violência da ideologia oficial do reino.

A erradicação de Bin Laden poderá roubar a alguns ditadores - da Líbia de Muamar Gadafi ao Iêmen de Ali Abdallah Saleh -, a principal justificativa que eles usaram durante suas décadas de repressão. Mas os EUA sabem perfeitamente bem que a Al Qaeda é o inimigo de conveniência de Saleh e de outros aliados americanos na região, e que em muitos casos o terrorismo tem sido usado como um pretexto para reprimir reformas. De fato, agora os EUA estão encorajando a repressão contra a Primavera Árabe no Iêmen e no Bahrein, onde as forças de segurança oficiais rotineiramente matam manifestantes pacíficos que reivindicam democracia e direitos humanos.

Al Qaeda e democracia não podem coexistir. Na verdade, a morte de Bin Laden deveria abrir os olhos da comunidade internacional para a origem de seu movimento: regimes árabes repressivos e suas ideologias extremistas. Do contrário, seu exemplo continuará a ameaçar o mundo.

Mai Yamani com doutorado em Antropologia pela Oxford University, é uma consagrada comentarista de política árabe e muçulmana, em especial da Arábia Saudita. Seu livro mais recente é "Cradle of Islam" (berço do Islã). Copyright: Project Syndicate, 2011.

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