Título: Setor de calçados patina, mas Franca vai bem
Autor: Villaverde , João
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2011, Especial, p. A16

Quando o empresário José Carlos Brigagão, o sindicalista Fabio Cândido, e o político Sidnei Franco da Rocha assumiram pela primeira vez, em 1983, seus cargos atuais - presidente do Sindicato das Indústrias Calçadistas de Franca (Sindifranca), presidente do Sindicato dos Sapateiros e prefeito da cidade, respectivamente - o município não chegava a 200 mil habitantes, mas era capaz de produzir 35 milhões de pares de calçados, exportar 35% do total e empregar quase 29 mil trabalhadores.

Hoje, Franca, que fica 400 km ao norte da cidade de São Paulo, já ultrapassou a marca de 300 mil habitantes, o número de empresas do polo calçadista dobrou, atingindo 731 firmas, mas há menos gente empregada no setor (24 mil), a produção caiu 25% (desde 1986) e a participação da exportação nas vendas não passa de 6% do total. De novo nos mesmos cargos que ocupavam nos anos 80, Brigagão, Cândido e Rocha fazem uma análise direta: Franca se desenvolveu, mas a indústria calçadista, não.

"O empresário pode reclamar do câmbio, dos tributos, dos chineses e da falta de qualidade da mão de obra, mas o maior problema é falta de qualificação do empresário mesmo", diz Brigagão. "Nossa gestão precisa ser revolucionada". Entre o centro da cidade - onde fica a primeira loja aberta pela rede Magazine Luiza - até o distrito industrial, que abriga o polo calçadista, quem visita Franca passa por três grandes supermercados: Carrefour, Makro e Walmart - todos inaugurados há menos de cinco anos. Além disso, a cidade conta com pouco mais de cem pequenos fabricantes de lingerie. "Para uma cidade que era sinônimo de calçados, até que estamos diversificados, não?", diz o prefeito Franco da Rocha (PSDB).

De acordo com dados coletados junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Produto Interno Bruto (PIB) industrial de Franca perdeu espaço não só para comércio e serviços, mas também para o campo - tradicional produtora de grãos de café, Franca tem surfado no aumento dos preços internacionais do produto. "Retomamos", diz Brigagão, "o patamar de 2008, antes da crise, e agora abrimos o ano decisivo".

Em 2008, a indústria de Franca representava 0,31% da indústria do Estado de São Paulo, bem abaixo do patamar de 0,38%, registrado em 1999 e 2004. Entre 1999 e 2008, a indústria perdeu quase três pontos percentuais de participação no PIB da cidade, passando de 22,7% a 20% - o setor de comércio e serviços, por outro lado, passou de 67,4% a 68%. Segundo um empresário ouvido pelo Valor, "2011 definirá o futuro do polo calçadista em Franca".

A valorização da taxa de câmbio - 46% nos últimos seis anos -, associada à forte expansão das exportações de bens manufaturados chineses, tem roubado mercado, externo e interno, dos fabricantes de calçados no país. Mas enquanto a produção total brasileira aumentou 45% em dez anos - de 450 milhões de pares, em 2000, para 820 milhões em 2010 -, Franca andou de lado. A participação do polo no total do país caiu pela metade: de 6% para 3,2%. "Se o câmbio e a China incomodam o setor e a indústria do país inteiro, por que apenas em Franca a produção não avançou?", pergunta Brigagão.

Para o pequeno empresário Dogival Ferreira, o setor público pode ajudar reduzindo os tributos cobrados da indústria, mas, "para deslanchar mesmo", diz, "será preciso que os empresários tenham planos, metas e saibam lidar com os negócios".

O caso de Ferreira é simbólico do polo calçadista de Franca, formado, na maior parte, por empresários que são ex-sapateiros. Representante comercial em Salvador (BA), entre 1996 e 2004, da microempresa de calçados Laroche, de Franca, Ferreira comprou a fábrica depois que o proprietário resolveu se desfazer do negócio.

Ferreira diz ter evitado a repetição do que considera "uma história clássica" do setor calçadista de Franca. "A empresa é fundada por um ex-trabalhador, cresce e depois fecha, porque o empresário começa a ter problemas com capital de giro, salários, fornecedores". A partir de 2004, Ferreira passou a morar na cidade e, desde setembro de 2009, aplica um ousado plano de investimentos em gestão.

Desde então foram contratados sete funcionários para áreas como design de produto, modelista e gerente de vendas. Neste mês, além de receber a primeira máquina importada (uma prensa italiana, usada), a empresa passará a contar com novo "layout" da linha de produção. "A ideia é ganhar eficiência", diz Ferreira, que espera produzir 250 mil pares neste ano - foram 220 mil no ano passado.

Desde 2007, a prefeitura de Franca oferece aos empreendedores da cidade um programa de qualificação, em parceria com o Sebrae. Cerca de mil pequenos empresários já passaram pelo curso, que dá noções básicas de administração de capital de giro e negociações com fornecedores. "É impressionante como fecha empresa calçadista aqui na cidade, precisamos explicar para esse pessoal como trabalhar", diz o prefeito.

Empresa de médio porte, a Pipper Calçados mantém, há 20 anos, o mesmo patamar de 10% a 15% da produção que embarca para fora do país. Para o diretor Rodrigo Carrera, sobrinho de Orlando Carrera, fundador da companhia, "as empresas deixam de exportar não por causa da competição com a China, mas por erros de planejamento".

Para o empresário, o câmbio dificulta grandes margens na exportação, mas incrementos na produtividade permitem "compensar", no mercado interno aquecido, eventuais dificuldades no exterior. "Em algum momento o câmbio ou da demanda externa melhorará, e não podemos perder o consumidor internacional até lá", diz.

No ano passado, a Pipper produziu pouco mais de 300 mil pares de calçados. Segundo Carrera, a empresa deve atingir 500 mil pares produzidos por ano, o que também deve ampliar o número de funcionários - atualmente são 310. A empresa acaba de importar da Itália duas máquinas novas, para o corte de couro.

Na Democrata, cerca de metade do total produzido em 2005 nas três unidades da empresa - além de Franca, existem duas fábricas no Ceará - seguia para o exterior. Hoje, esse volume não ultrapassa 30% da produção, que no ano passado atingiu 1,2 milhão de pares.

"Em volume exportado, a queda foi forte, mas em valor, não", explica Marcelo Paludetto, gerente comercial da companhia. Segundo ele, houve mudança no calçado exportado. Antes, a Democrata produzia calçados para marcas americanas, como a da rede de lojas J.C.Penney, e hoje exporta com marca própria.

"Os americanos passaram a usar a China como fabricante de seus calçados, e nós passamos a investir em design próprio", diz. Com pouco mais de 2 mil funcionários, a companhia usa 80% da capacidade instalada e espera produzir este ano 9,6% mais que em 2010.

A demanda externa se mantém forte também para a Pipper, que teve de recusar novos encomendas do exterior, na semana passada, para fazer frente aos pedidos do início do ano. "A demanda nos primeiros meses veio acima das nossas expectativas", diz Carrera.

O maior problema para ampliar rapidamente a produção, diz Carrera, está na mão de obra. Segundo ele, os fabricantes de lingerie e o comércio varejista têm provocado uma "guerra" pela mão de obra. "Na lingerie, o trabalhador recebe um pouco mais. No comércio, como no Carrefour ou no Walmart, há uma questão de status, e muitos preferem ir para lá, mesmo ganhando menos".