Título: Dois euros, inflação ou bolsa país?
Autor: Cysne, Rubens Penha
Fonte: Valor Econômico, 03/06/2011, Opinião, p. A15

Ao eliminar a taxa nominal de câmbio como elemento de ajuste entre economias demasiado heterogêneas, o Acordo de Maastricht acabou por gerar um problema de longo prazo que ameaça a sobrevivência do próprio euro.

Por conveniência política, deixou-se temporariamente de lado em 1999 que uma união monetária elimina o câmbio nominal, mas não a taxa de câmbio real entre diferentes economias, que neste caso se mede em termos dos preços relativos de bens e serviços produzidos em cada país. Ocorre que uma variável fundamental nessa determinação é dada pelos aportes de produtividade, que têm diferido substancialmente na área do euro.

Para alguns países, de certa forma o euro funcionou como uma espécie de pré-sal monetário. Gerou uma confiança financeira passageira que acabou por postergar a consecução de importantes reformas, causando perdas importantes de competitividade e elevados déficits na conta corrente do balanço de pagamentos.

Com certos países sistematicamente mais afeitos à pesquisa e inovação do que outros, estabelece-se um desequilíbrio de longo prazo na conta corrente do balanço de pagamentos que se reflete, em última instância, na criação de passivos externos líquidos demasiado elevados nos países menos produtivos.

Na ausência da correção por desvalorização do câmbio nominal, há pelo menos seis alternativas para a correção dos desequilíbrios daí decorrentes.

A possibilidade mais radical seria deixar os países em dificuldades trilhar seu próprio caminho de insolvência. Além do efeito "bola de neve" e das fortes perdas de produto, entretanto, o problema com tal alternativa é que, de certa forma, uma área monetária comum pressupõe algum grau de coordenação e solidariedade entre economias, fato do qual se estaria abrindo mão.

Uma segunda alternativa estaria na queda de salários nominais nas economias menos produtivas. Isto, entretanto, como nos ensinou Keynes há longo tempo atrás, faz parte do conjunto de medidas de fácil citação e difícil realização.

Uma terceira alternativa estaria numa política monetária do Banco Central Europeu (BCE) mais voltada para o desemprego dos países de baixa produtividade do que para o controle inflacionário demandado pelos países de alta produtividade. O problema aqui é a resistência dos países mais produtivos: um euro com inflação é a negação do euro da forma como inicialmente concebido.

Uma quarta alternativa se daria por meio de elevadas taxas de migração dos países de baixa produtividade para os países de alta produtividade. Barreiras sociais, de costumes, linguísticas e políticas, entretanto, dificultam fortemente tal tipo de ajuste.

Uma quinta possibilidade, segundo alguns, também uma negação das intenções iniciais de Maastricht, seria a cisão do euro em dois euros, o "euro forte", da Alemanha e demais países fortes, e o "euro fraco", da Grécia e dos demais países em dificuldades. Como disse um economista europeu, com doses de ironia, "se o euro é bom, porque não ter dois, ao invés de um?"

A ideia tem cativado algumas mentes em função de um apelo macroeconômico preliminar: o ganho de competitividade gerado pela queda de rendimentos reais (em termos de euro forte) dos países que adotassem a moeda fraca. De fato, isso poderia corrigir parcialmente os desequilíbrios dos respectivos balanços de pagamento em transações correntes, tendo em vista que como parte do plano o euro fraco já nasceria desvalorizado em relação à moeda forte.

Da forma como é usualmente citada, a proposição contém um importante anexo: as dívidas anteriormente denominadas em euro forte permaneceriam denominadas nessa mesma moeda, fato evidentemente mais ao agrado dos credores do que ao dos devedores.

Ainda que represente uma possibilidade de última instância de evolução dos fatos, as chances de sucesso de tal estratégia são bastante reduzidas. Além dos problemas de ordem reputacional e política, há pelo menos duas dificuldades técnicas. Primeiro, ao juro já contratado da dívida externa somar-se-ia a desvalorização do euro fraco face ao euro forte. Uma possibilidade aqui seria negociar-se um meio termo, com algum tipo de acordo entre credores e devedores.

Segunda dificuldade técnica, que tem sido perigosamente esquecida nas discussões dessa estratégia, a expectativa dominante sem correção e coordenação fiscal seria de que a primeira desvalorização do euro fraco em relação ao euro forte seria seguida por outras. Isso implicaria uma tendência natural dos países como um todo (não apenas aqueles com euro forte) a utilizar essa moeda forte nas transações econômicas, reduzindo a demanda pelo euro fraco, tornando difícil controlar a inflação na nova moeda.

A sexta possibilidade seria a manutenção de uma "bolsa país" da Alemanha e Holanda para os países menos produtivos, suficientemente longa para tornar possíveis os ajustes necessários. A configuração seria majoritariamente de empréstimo de longo prazo, mas um componente de transferência gratuita seria inevitável, tornando elevados os custos políticos nos países fortes.

Rubens Penha Cysne é diretor da EPGE/FGV.