Título: Comércio com Argentina demanda regras estáveis
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2011, Opinião, p. A8

O recente episódio de disputa comercial com a Argentina pode ser um momento emblemático da desmoralização da área de livre comércio do Mercosul ou um marco na superação de problemas alfandegários com o vizinho. Tudo vai depender da maneira como os dois governos resolverão a crise iniciada com barreiras burocráticas impostas pelos argentinos a produtos brasileiros - e escancarada após a reação brasileira de também apelar ao cambalacho aduaneiro, criando barreiras contra automóveis argentinos, a pretexto de "monitorar" a entrada de veículos importados no Brasil.

Em fevereiro, a Argentina ampliou o uso de licenças não automáticas, mecanismo protecionista que os vizinhos acreditam ser uma ferramenta útil para sua incipiente política industrial. A lista de 400 produtos submetidos a exigências na alfândega passou a 577, incluindo automóveis, autopeças e eletroeletrônicos. Desde janeiro, porém, o país tem fechado a alfândega para entrada de máquinas agrícolas do Brasil, e dribla pedidos de licença de produtos como calçados.

Os argentinos prometeram aos sócios do Mercosul que respeitariam o prazo máximo de 60 dias para emissão de licenças de importação, fixado pela organização Mundial do Comércio (OMC). Ficaram na promessa. Indústrias de calçados se queixam de esperas superiores a 120 dias pelas licenças que não vêm e calculam que 800 mil pares de sapato esperam pelo dia em que poderão ser entregues aos compradores argentinos.

No caso das máquinas agrícolas, a estimativa é de que a burocracia brecou na fronteira pelo menos 2,5 mil tratores entre janeiro e abril. Parece galhofa o caso dos ovos de chocolate impedidos de chegar às lojas do país vizinho antes das Páscoa, por exigências de certificados de saúde de uma instituição que se dizia impossibilitada de emiti-los.

Não é nova a prática de criar dificuldades para forçar empresas brasileiras exportadoras a instalar fábricas na Argentina. Em 2009, um grande produtor de autopeças decidiu produzir em território argentino para acabar com a dor de cabeça na fronteira. É notável a coincidência entre as dificuldades dos exportadores de tratores e colheitadeiras brasileiros e o anúncio de que grandes fabricantes argentinos de máquinas agrícolas planejam transferir parte da produção para o Brasil, para mais perto de seu principal consumidor.

Hoje e amanhã, em Buenos Aires, reúnem-se o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Alessandro Teixeira, e o secretário da Indústria argentino, Eduardo Bianchi, para negociar o fim das retenções abusivas de mercadorias na fronteira, em troca da suspensão da medida brasileira contra automóveis. Desde a semana passada, carros enfrentam exigência de "anuência prévia" do ministério para entrar no Brasil. Nem os brasileiros admitem retirar essa exigência, porém, nem os argentinos falam em eliminar ou reduzir a lista de produtos sujeitos aos humores dos burocratas nas aduanas.

É um bom sinal o fato de que esta crise caminhe para negociações sem interferência presidencial, que foi a única maneira de resolver impasses do passado. Mas nem Bianchi nem Teixeira terão poder de extinguir as picuinhas que acrescentam graus inadmissíveis de imprevisibilidade à imperfeita união aduaneira do Mercosul.

A Argentina argumenta que as "assimetrias" entre as duas economias impedem os sócios do Mercosul de eliminar, como gente grande, os obstáculos à livre circulação de mercadorias entre suas fronteiras. Se é assim, que se convoquem os diplomatas e se renegocie o acordo constitutivo do bloco do Cone Sul, para lhe dar a necessária transparência.

Os resultados comerciais entre os parceiros do Mercosul apontam o bloco como uma experiência bem sucedida, com franca vantagem para o Brasil, que, desde 2004 tem mantido superávits próximos a US$ 5 bilhões anuais com os sócios, cujos mercados estão entre os principais compradores de manufaturados brasileiros. Mas a generalização das malandragens de alfãndega sob a capa de política industrial têm de acabar, antes que transformem esse êxito em motivo de piada, e mau exemplo na literatura sobre acordos de comércio.