Título: Risco é afetar também o crescimento em 2012, diz Ibrahim Eris
Autor: Ibrahim, Eris
Fonte: Valor Econômico, 25/05/2011, Especial, p. A16

Sergio Lamucci | De São Paulo O Banco Central enfrenta o teste mais duro desde o começo do regime de metas de inflação, por se defrontrar pela primeira vez com uma inflação de demanda, acoplada, para piorar, a um choque de commodities, diz o ex-presidente do Banco Central Ibrahim Eris. "Inflação de demanda é muito mais difícil de derrotar, levando mais tempo para ser debelada", afirma ele, para quem o BC subestimou inicialmente essa fonte de pressão, que se dá num ambiente de mercado de trabalho muito aquecido. "Uma inflação rodando no limite superior da banda ou rompendo esse limite [de 6,5%] é sempre preocupante, mas o mais importante é a natureza da inflação que estamos enfrentando desde o fim do ano passado e neste ano." O temor de Eris é que, se o cenário desenhado pelo BC não se confirmar, será necessário aumentar mais os juros, o que pode comprometer o crescimento também em 2012. "O risco é de perdermos dois anos, em vez de um só."

Para Eris, o BC mudou o diagnóstico em seus documentos mais recentes, passando a dar mais peso à questão da inflação de demanda, mas ainda adota uma estratégia gradualista demais. Um problema sério é que, na virada de 2011 para 2012, o país terá um choque significativo - o aumento do salário mínimo de 14%, diz o economista. "Não é desejável que, na ocasião, a inflação esteja rodando em 6%, em 6,5% em 12 meses. Se os salários já estão rodando razoavelmente acima da inflação, é muito difícil imaginar que, em outros segmentos da economia, as negociações salariais não sejam influenciadas por um aumento tão forte." Nesse cenário, ele acha que o BC errou ao decidir alongar o prazo de convergência da inflação para a trajetória das metas, abandonando a tentativa de fazê-lo em 2011. Trata-se de uma discussão válida, segundo Eris, mas o momento escolhido não lhe parece conveniente.

O ex-presidente do BC observa que o choque de commodities é real e tem peso para explicar o nível atual da inflação. A questão é que, se amanhã esse choque desaparecesse, ela ainda ficaria acima do centro da meta, de 4,5%.

Ao mesmo tempo em que faz esses alertas, Eris diz não ver risco de descontrole inflacionário ou reindexação. "Acredito que esse governo vai fazer o que for necessário para debelar a inflação. Se ao longo de 2011, especialmente no terceiro trimestre, a inflação não coincidir com a trajetória desenhada pelo BC, a política será alterada e vai ser feito o que for necessário. E isso significa que os juros serão maiores." A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O Brasil enfrenta hoje uma situação de menos crescimento e mais inflação do que em 2010. Como o sr. avalia essa situação?

Ibrahim Eris: Isso é uma herança de uma sequência de eventos que começa com a crise. Naquele momento, o país estava iniciando um processo de aumento de juros, em antecipação a um processo de aquecimento da economia, junto com um choque de preços que vinha de fora, das commodities. Quando veio a crise, era natural que o Brasil reagisse com incentivos fiscais, monetários e estímulos de crédito via bancos públicos. Além disso, houve uma forte campanha sobre expectativas, muito bem sucedida, liderada pelo presidente. Assim amortecemos o efeito da crise, saímos mais rápido dela, num ritmo robusto. É um grande mérito da política econômica desenhada naquele momento.

Valor: Os estímulos duraram tempo demais?

Eris: Nós tivemos uma infelicidade. Isso ocorreu em 2009 e no começo de 2010, e 2010 era um ano eleitoral. Num ano eleitoral, é muito difícil que os governos revertam essas coisas. O que ocorreu é que os estímulos fiscais, tributários, de crédito e de política monetária continuaram por mais tempo do que deveriam. É tão simples assim. Havia uma eleição a ser ganha, com uma candidata que precisava ser vendida ao público, pouco conhecida. Era uma eleição difícil para o PT e para Lula. Certamente isso teve o seu papel, e deixou essa herança de inflação em ascensão.

Valor: O IPCA acumulado em 6,51% em 12 meses é algo que exige medidas mais drásticas?

Eris: O que me preocupa não é tanto o número. Uma inflação rodando no limite superior da banda ou rompendo esse limite é sempre preocupante, mas o mais importante ou mais grave é a natureza da inflação que nós estamos enfrentando desde o fim do ano passado e neste ano. Esta é a primeira vez em que o regime de metas de inflação será testado com uma inflação de demanda, acoplada a um choque de preços via commodities. Algo parecido estava se desenhando em 2008. Mas, naquela ocasião, o BC se antecipou inclusive aos eventos, enquanto desta vez o BC esperou para ver o que vai ocorrer. Em 2008, veio a crise e a coisa mudou. O desemprego estava mais alto. Esse é o grande teste do BC, e talvez o BC esteja subestimando esse quadro. O problema não é o número de 6,5%, porque já houve inflações mais altas que foram combatidas e derrotadas com razoável rapidez.

Valor: O sr. pode dar um exemplo?

Eris: Um caso foi quando Lula assumiu o governo. Na antecipação à sua eleição houve uma inflação de expectativas, que pioraram porque havia a perspectiva de entrada no governo de uma pessoa a quem foram atribuídas várias "loucuras" em matéria de política econômica. Bastou Lula fazer as coisas certas e a inflação foi derrotada de modo relativamente fácil. Inflação de demanda é uma inflação muito mais difícil de derrotar, que leva mais tempo para ser debelada. Nós estamos vindo de um ano de crescimento elevado, em que a demanda crescia muito acima da oferta. Isso resultou em dupla situação de inflação mais elevada, especialmente de serviços, e déficit em conta corrente.

Valor: Em que medida a mudança de presidente do BC tornou a situação mais complicada?

Eris: Isso trouxe incertezas, inerentes a um cenário de uma equipe econômica parcialmente renovada, com um novo presidente do BC e uma nova presidente. A parte da equipe mantida, em particular o ministro da Fazenda, tomou medidas controvertidas na política fiscal, assim como em matéria de crédito, como a capitalização do BNDES. É natural os mercados reagirem com cautela. O fato de o BC ser composto apenas por funcionários de carreira trouxe dúvidas sobre a sua independência.

Valor: O sr. compartilha dessas dúvidas?

Eris: Essa discussão é muito poluída. É bom abordar essa questão com calma. Primeiro, houve uma controvérsia sobre o diagnóstico da inflação, e os dois lados exageraram. Enquanto o mercado enxergava uma inflação de demanda, acrescida de um choque de commodities, o governo, inclusive o BC, deu sinais de que achava que a inflação derivava muito mais de um choque de commodities e muito menos do que uma questão de demanda, dando uma ênfase maior aos fatores sazonais. Essa posição foi manifestada em várias ocasiões. Pelo ministro da Fazenda, pela presidente Dilma Rousseff, na entrevista ao Valor, quando ela negou que nós tivéssemos inflação de demanda, e pelo BC, na ata da primeira reunião do Copom. Dá para notar ao longo do tempo uma convergência de posições nesse aspecto. A última ata do BC foi muito mais equilibrada quanto à inflação de demanda.

Valor: Quais foram as outros motivos de controvérsia?

Eris: Um dos primeiros sinais que o BC deu foi de gradualismo, quando postergou para 2012 a convergência da inflação para a meta, em vez de fazê-lo em 2011. Os mercados fizeram muito oba-oba sobre isso. Alguns concluíram que haveria falta de disposição para combater a inflação. Isso é um erro. No começo do regime de metas, nós tivemos grandes, sérias e corretas discussões sobre o período de convergência. Havia muita gente, inclusive alguns dos críticos hoje, propondo que ele não tinha que ocorrer dentro de um ano, que o custo poderia ser muito alto. Não há crime em alongar o período.

Valor: Mas no caso atual seria desejável?

Eris: Essa é a questão. Eu não sei se foi um bom momento para abrir esse debate. Era o início de um novo governo, com um novo BC, sendo natural que as dúvidas surgissem sobre a disposição de combater a inflação. E há outros fatores. Na virada de 2011 para 2012, nós teremos um choque significativo - o aumento do salário mínimo na casa de 14%. Não é desejável que, na ocasião, a inflação esteja rodando em 6%, em 6,5% em 12 meses. Se os salários já estão rodando razoavelmente acima da inflação, é difícil imaginar que, em outros segmentos da economia, as negociações salariais não sejam influenciadas por um aumento tão forte do salário mínimo. E também há embutido na economia dois eventos que vão aquecer a demanda de qualquer modo - a Copa do Mundo e a Olimpíada.

Valor: Como o sr. analisa as medidas macroprudenciais?

Eris: Primeiro, elas não foram invenção do BC brasileiro. Há uma busca no mundo por outros instrumentos que não sejam apenas os juros. A crise, se nos ensinou alguma coisa, foi sobre a atuação dos bancos centrais, que eles não deveriam olhar apenas a inflação como única variável a ser monitorada. As medidas macroprudenciais foram trazidas à mesa por motivos que não são exclusivamente relacionados à questão da inflação, mas muito mais por causa da saúde do sistema financeiro. Elas têm implicações sobre a demanda e também servem como instrumento para a inflação. Mas são pouco estudadas, pouco modeladas e pouco conhecidas em termos de sua influência indireta sobre a demanda e sobre a inflação. Quando o BC atribuiu certos valores de equivalência entre mudança de juros e medidas macroprudenciais, caíram os céus.

Valor: O BC errou ao fazer isso?

Eris: Talvez em explicitar os números, se bem que de algum modo ele foi forçado a fazê-lo. Não há como tomar essas medidas, dizer que elas ajudam a combater a inflação e não quantificar. O terceiro ponto de mudança se refere às expectativas de inflação. O BC tomou uma atitude de que as expectativas têm pouca influência. Num modelo de regime de metas, baseado em expectativas, isso deu a ideia de que o BC talvez estivesse mudando a política monetária como um todo. Para mim, não foi isso. Há novos instrumentos, mas não é que o BC negue a política de metas.

Valor: O BC mudou o diagnóstico sobre a inflação, mas ao mesmo tempo reduziu o ritmo de alta de juros. Não é uma contradição?

Eris: A ata da última reunião do Copom abriu uma brecha melhor do que muitos suspeitavam. Eles aumentaram a Selic em 0,25 ponto percentual, disseram que vão continuar se for o caso e se livraram do compromisso anterior de dar mais um aumento e parar, ou dar dois e parar. Nesse sentido, a ata foi inteligente. Mas eu não teria reduzido ritmo de alta de 0,5 para 0,25 ponto. A economia precisa de algo um pouco mais forte. Talvez o BC esteja arriscando demais ao tentar economizar alguns pontos-base nos juros. Há um risco de a economia se desacelerar, mas não o suficiente para a inflação ter a trajetória que o BC diz que terá.

Valor: A inflação em 2012 fica acima do centro da meta?

Eris: Acho que não, e deixe-me dizer por quê. Acredito que esse governo fará o que for necessário para debelar a inflação. É uma questão de dosagem. Se ao longo de 2011, especialmente no terceiro trimestre, a inflação não coincidir com a trajetória desenhada pelo BC, a política será alterada e vai ser feito o que for necessário. E isso significa que os juros serão maiores. Na política fiscal, o governo deu demonstrações de seriedade neste ano. Eu não tenho dúvida de que em 2012 nós vamos convergir para 4,5%. Nós estamos discutindo com que custo e a que ritmo.

Valor: A presidente Dilma disse, em entrevista ao Valor, que o combate à inflação é prioridade, mas ao mesmo tempo afirmou ter certeza de que o Brasil vai crescer entre 4,5% e 5% neste ano. Há incompatibilidade entre essas duas coisas?

Eris: Sem dúvida que há. Se a economia crescer 4,5% a 5% - o que não vai ocorrer - a inflação não vai convergir para a meta nem em 2012. Essa é a grande diferença entre a inflação de demanda e uma inflação de expectativas ou um choque de commodities. Inflação de demanda cria um círculo virtuoso - ou vicioso, como você quiser identificar - de demanda, emprego, salário, demanda, emprego, salário. Nós estamos hoje nesse ciclo, num ritmo insustentável. A nossa taxa de desemprego é baixa demais para uma economia que precisa reduzir a inflação dois ou três pontos percentuais. As pressões salariais são verdadeiras. Em todos os segmentos há escassez de mão de obra, e não apenas qualificada. Com a continuidade da atual política atual, nós vamos fechar o ano com crescimento abaixo de 4%, mas muito perto de 4%.

Valor: Para a inflação convergir para a meta em 2012, os juros precisarão subir com mais força?

Eris: Acho que sim. Ou as medidas macroprudenciais têm que ser mais fortes. É necessário derrubar mais o crescimento, especialmente a demanda. Mas é preciso reconhecer um ponto importante: fazemos política monetária num ambiente extremamente incerto lá fora. Isso tem que ser considerado. Se a queda de commodities que ocorreu nos últimos 30 dias, de quase 10%, continuar, o mundo muda razoavelmente bem.

Valor: Qual o peso do choque de commodities na inflação?

Eris: Ele foi real. Não é porque o governo está dizendo que está errado. Um bom pedaço da nossa inflação tem a ver com isso, embora não se limite a ele. Se amanhã desaparecesse esse choque, ainda restaria uma inflação acima de 4,5%. Basta olhar os preços dos serviços e de outros não comercializáveis, que estão em patamares muito elevados. Devido à história de hiperinflação e à enorme fome para o consumo, eu preferiria correr o risco de um exagero no lado dos juros e medidas restritivas do que correr o risco de a inflação não cair ao longo de 2011 e ter que tomar mais drásticas. Mas o choque que você precisa dar em termos de juros é diferente se as commodities estão em ascensão ou em declínio.

Valor: Há o risco de ter um crescimento abaixo de 4% em 2011 e um número fraco também em 2012?

Eris: Sim. O risco é de perder dois anos, em vez de um só.

Valor: A indexação pode voltar?

Eris: O Brasil de 2010, 2011, 2012, é completamente diferente do Brasil dá década de 80, do começo da década de 90. É uma economia com certos vícios, certas fragilidades, mas com um problema de inflação que se limita a esses números - 6%, 5%, 7%.

Valor: Em que medida o medo de uma valorização adicional do câmbio faz o BC ser mais cauteloso?

Eris: Isso de fato limita o grau de liberdade na política monetária. Não pode ser negado. Nós estamos vivendo um momento único. Em 40 anos de economista, eu nunca vi uma situação como a atual, em que os países desenvolvidos estão em crise, e do outro lado, os emergentes bombam e enfrentam problema de inflação. Isso traz problemas para a política econômica nesses países. Quando você aumenta juros, o investidor estrangeiro diz: achei um belíssimo lugar para aplicar o meu dinheiro. Isso não apenas valoriza o câmbio, mas também traz liquidez para a economia que você não quer. É um funding para o crédito. O governo tem enfatizado isso e eles estão certos. Isso coloca limites para o que fazer com juros. Por causa disso, instrumentos alternativos aos juros são bem vindos. Infelizmente eles não são tão eficazes, acho que isso nem o governo nega.

Valor: O governo tem o que fazer para conter a valorização? Eles devem buscar uma desvalorização?

Eris: Se os bancos centrais dos países desenvolvidos começarem a aumentar os juros ou tomarem medidas que restrinjam a liquidez, uma desvalorização do real seria natural, e isso terá impacto sobre a inflação. Essa é outra incerteza que me faz pensar que o BC deveria agir com um pouco mais de força. O momento escolhido para o gradualismo não foi dos melhores.

Valor: O governo deveria elevar o IOF ainda mais para conter a valorização, ou adotar uma quarentena?

Eris: As medidas tomadas já foram razoáveis. Esse nível de câmbio que está aí não pode ser divorciado das medidas já tomadas. Eu seria cauteloso e agiria devagar.

Valor: O sr. se preocupa com o efeito do câmbio sobre a indústria?

Eris: Sem dúvida, mas hoje a minha prioridade seria a inflação.

Valor: Nós discutimos quase uma hora os problemas da economia brasileira, mas os investimentos estrangeiros diretos devem bater em US$ 60 bilhões neste ano. O que eles veem que nós não vemos ou o que nós vemos que eles não veem?

Eris: A análise deles pode ser mais superficial, um pouco mais otimista do que a nossa, mas não há grande diferença entre as duas visões. O Brasil não vai acabar por causa da inflação. As oportunidades de investimento não perdem atratividade se a inflação for 6%, 7% e não 5%. E eu não acho que exista descontrole inflacionário. Há uma inflação em ascensão, uma questão séria, que exige medidas sérias, mas não há descontrole.