Título: Vítimas com idade marcada
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 15/08/2010, Brasil, p. 12

Pesquisa de médica-legista de Fortaleza, com 343 casos, mostra que pré-adolescentes de 10 a 14 anos representam 40% dos registros de agressões físicas e abusos sexuais, ao contrário do que relata boa parte dos estudos sobre o tema

Frágeis e indefesas, crianças nos primeiros anos de vida sempre foram consideradas as vítimas em potencial de violência doméstica. Não são poucos os casos de maus-tratos envolvendo até bebês de colo. Porém tese de doutorado recém-defendida na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) questiona a ideia, corroborada inclusive por grande parte da literatura disponível sobre o assunto. A análise de 343 casos no Instituto de Medicina Legal (IML) de Fortaleza, onde a pesquisadora Helenna Carvalho trabalha, aponta os pré-adolescentes de 10 a 14 anos como 40% das vítimas de agressões físicas e abusos sexuais.

Embora não saiba dizer os motivos exatos de meninos e meninas dessa faixa etária serem a maioria nos registros, a médica-legista Helenna tem algumas suposições. Eles têm mais independência, conversam com professores, com colegas, têm acesso às informações. As crianças, por sua vez, muitas vezes nem conseguem se dar conta de que estão sendo vítimas de uma violência, destaca a especialista. Por tudo isso, ressalta, os pré-adolescentes conseguem sair mais da invisibilidade. Não é que as crianças estão sendo menos vítimas, é que os quase adolescentes estão aparecendo mais, explica Helenna.

Perfis O fato de a pesquisa ter sido feita no Ceará, segundo Helenna, não invalida os resultados em outros ambientes. Temos um contexto de mais pobreza por estarmos no Nordeste, entretanto isso não causa uma interferência determinante. Podemos transpor esse perfis para qualquer cidade brasileira, diz a especialista. O número de episódios de violência física (172) e sexual (167) verificado foi praticamente igual. A mãe, em 48,4% dos casos, foi quem notificou a agressão contra o filho. Mas também são elas que espancam a criança, praticamente na mesma proporção que os pais. Somente nas situações de abuso sexual é que padastros (32,3%) e pais (30%) aparecem em maior proporção e quase empatados.

Para Ariel de Castro, vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a maior autonomia dos adolescentes em relação às crianças explica em parte a presença deles, em quantidade superior, nas salas dos IMLs. Mas ele também atribui o fenômeno à forma de educação praticada pelas famílias atualmente. Muitas vezes esses pais vivem sem tempo para o diálogo e ausentes no que diz respeito a impor limites. E os adolescentes são, naturalmente, mais questionadores. Então, na hora em que surge um conflito, eles acabam tentando estabelecer os limites por meio da violência, opina Ariel.

Suspeitas Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determinar como obrigatórios a notificação e o encaminhamento de suspeitas de casos de violência por parte de educadores e profissionais da saúde, nenhuma das 343 vítimas pesquisadas por Helenna chegou ao IML direcionada por postos ou hospitais. Somente 1,7% dos casos foram notificados por professores. Existe alguma coisa que não está funcionando bem, talvez falte treinamento. O que percebemos é que parte dos profissionais têm medo de retaliações dos familiares, outros acham que não devem se meter em uma questão familiar. Mas temos que lembrar que a notificação de suspeitas é compulsória, ressalta a pesquisadora.

Eles (os adolescentes) têm acesso às informações. As crianças, por sua vez, muitas vezes nem conseguem se dar conta de que estão sendo vítimas de uma violência

Helenna Carvalho, médica legista e autora do estudo