Título: Os impasses com o vizinho
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 16/05/2011, Brasil, p. A2
"Isso é mais velho que a Sé de Braga", reagiu o embaixador José Botafogo Gonçalves, ao comentar a mais recente peleja entre Brasil e Argentina por questões comerciais. A comparação é mais gasta até que a catedral portuguesa milenar que a geração do diplomata acostumou-se a citar ao falar de coisas antigas. Mas é apropriada, apesar do exagero. A incapacidade dos dois maiores sócios do Mercosul de se engajar de fato numa área de livre comércio é velha e ameaça de esclerose o bloco do cone Sul. Momentos de "paciência estratégica" e de rompimento frequentaram o governo Luiz Inácio Lula da Silva, o de Fernando Henrique Cardoso, e agora têm versão Dilma Rousseff.
Botafogo é ex-ministro da Indústria e Comércio, ex-embaixador do Brasil na Argentina e um dos raros entusiastas do Mercosul e da prioridade ao entorno sul-americano entre os diplomatas próximos à oposição. Mas é pessimista em relação a uma solução duradoura para os conflitos comerciais entre os dois países. Não só porque são normais atritos entre sócios em acordos comerciais, mas também por ver inconsistências na política industrial argentina.
De fato, são características da gestão econômica no país vizinho a interferência governamental no setor privado, a falta de ambiente para financiamento de longo prazo e recorrentes atritos com a indústria, setor que, aparentemente, o governo de Cristina Kirchner pretende agradar agora, em período eleitoral. Com políticas econômica independentes, às vezes contraditórias, Brasil e Argentina não têm horizonte para estratégias comuns de desenvolvimento. A perda de competitividade da economia argentina, enfrentada na base de proteções tarifárias, acrescenta pimenta ao impasse.
A ministra da Indústria argentina, Débora Giorgi, tem razão, porém, ao argumentar que também o Brasil cria barreiras a produtos argentinos competitivos, como vinho, mosto de uva, laticínios e azeite e que a competitividade de itens como máquinas e equipamentos é garantida no Brasil por empréstimos subsidiados do BNDES.
Neste último caso, no entanto, ela não leva em conta o efeito contrário causado pela taxa de câmbio, que torna mais caros os produtos brasileiros, em dólar. Giorgi, antes, dizia que o Brasil competia deslealmente por manter o real desvalorizado; agora que a valorização castiga os exportadores brasileiros, acusa o BNDES de financiar deslealmente, lembra Botafogo.
A lista de queixas da ministra mistura barreiras protecionistas reais com medidas do mercado sobre as quais o governo não tem poder (diferentemente do que ocorre no país vizinho). Ela acusa, por exemplo, a indústria brasileira de pressões contra fornecedores do setor de eletrodomésticos da linha branca. Para engordar o dossiê contra o Brasil, Giorgi se queixa ainda de medidas antidumping, ditadas por critérios técnicos, e de demoras no registro de produtos químicos e medicamentos - sofridas indiscriminadamente por brasileiros e estrangeiros. Só assim consegue calcular prejuízos de US$ 7 bilhões aos exportadores argentinos.
Há uma diferença importante entre práticas no Brasil e Argentina: as barreiras brasileiras são conhecidas de antemão pelos potenciais exportadores, enquanto a Argentina muda práticas arbitrariamente, como fez com as manobras burocráticas que atrasaram na fronteira carregamentos brasileiros de ovos de Páscoa, até se transformarem em coisa velha nos armazéns.
Em 1999, após dura reação diplomática do Brasil a uma medida para barrar subitamente importações de manufaturados, o então presidente argentino Carlos Menem viajou apressadamente a Brasília para um acerto com Fernando Henrique, que ameaçava retaliações. Dois anos depois, o Brasil agasalhava outra medida unilateral argentina, desta vez antiprotecionista: uma redução de tarifas para máquinas e equipamentos para indústria e bens de telecomunicação - um drible às tarifas do Mercosul que beneficiavam fabricantes brasileiros.
Com Lula, a paciência durou dois mandatos, até que, em 2009, por insistência do então ministro Miguel Jorge e seu secretário Welber Barral, foram retidos na fronteira produtos de regiões argentinas com peso no jogo eleitoral local, em represália à retenção de mercadorias brasileiras. Daí acertou-se que não haveria mais barreiras sem aviso prévio e que nenhuma licença demoraria mais de 60 dias para ser emitida.
O precedente do acordo no governo Lula e a irritação com a quebra de promessa argentina explicam a rápida decisão do governo brasileiro, na semana passada, de forçar uma negociação criando barreiras burocráticas à liberação de licenças de importação para automóveis, principal manufaturado de exportação dos argentinos ao mercado brasileiro. A maior queixa no Brasil é contra a imprevisibilidade e discricionariedade das barreiras argentinas, que causam prejuízos irrecuperáveis a empresas de menor porte e sabotam a cambaleante área de livre comércio do Mercosul.
Mais que reflexo do estilo pragmático de Dilma Rousseff, o episódio mostra a irritação generalizada com os métodos do protecionismo argentino. Inclusive no Itamaraty, que sempre resistiu a retaliações com o argumento, sólido, de que, apesar das dores de cabeça, os argentinos têm déficit crescente no comércio com o Brasil e todos os setores tem aumentado exportações para lá. A diplomacia envolveu-se muito pouco da discussão, desta vez.
Hoje, Giorgi e o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, trocam telefonemas para decidir se marcam encontro para discutir o fim das querelas. Giorgi insiste que, antes, o Brasil tem de voltar atrás na medida para automóveis. Se ficar só nisso, deve haver impasse.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras