Título: Ficha suja e ficha limpa
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 15/08/2010, Opinião, p. 21

Fiz no domingo passado algumas considerações sobre a incumbência do juiz na hora da prestação jurisdicional. Na análise da causa não deve apenas se ater ao texto frio da norma. Haverá também de se valer do conjunto dos demais elementos circunstanciais que a contornam. Não há de proceder distintamente, em consequência, na hipótese de ter que apreciar questão judicial com base na vigente Lei da Ficha Limpa. Os cidadãos de bem do país gostariam que o processo eleitoral se realizasse da forma mais límpida possível. Esse é o escopo visado com a criação dos novos institutos de inelegibilidade. A Constituição assegura, por seu lado, que qualquer lesão ou ameaça de direito é passível de reparação judicial.

Quem se sentir prejudicado pode recorrer à Justiça para buscar proteção estatal. A inovação legal impôs a obrigatoriedade do cumprimento imediato dos novos mecanismos de inelegibilidade. Destinam-se a evitar o registro de candidaturas despidas de requisitos éticos para o exercício de mandato popular. Há, no momento, em tramitação na Justiça Eleitoral, por isso mesmo, centenas de ações em que se questionam aspectos jurídicos da norma. Tratam de situações constituídas que, conforme é sustentado, não poderiam ser alcançadas pelo novo ordenamento.

Como tem aplicação imediata, é preciso saber se a lei não fere o princípio constitucional da anualidade. É que norma de processo eleitoral só pode ter eficácia após um ano da respectiva publicação. Toquei também na necessidade de definir se a inexistência do trânsito em julgado das decisões objeto de inelegibilidades não violaria o princípio constitucional da inocência presumida. Ora, se o juiz, ao julgar uma questão, não se adstringe tão só à letra da lei, torna-se evidente que essas e outras questões suscitadas terão que ser por ele consideradas.

Sabe-se que o tema já foi, em consulta formulada, respondido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Assentou-se que a Lei Complementar nº 135 tem, sim, aplicação para as eleições de outubro próximo. Todavia, consultas respondidas pelo TSE não produzem efeitos vinculantes e não podem ser invocadas como precedentes judiciais. É bem provável que os fundamentos adotados na ocasião sejam confirmados quando a Corte se pronunciar em julgamento contencioso. Por se tratar, contudo, de matéria constitucional, caberá ao Supremo Tribunal Federal, como instância que se situa no topo da hierarquia do Poder Judiciário, dar a palavra final.

Trânsito em julgado só se opera quando a decisão proferida não comportar mais recursos. Isso quer dizer que, se todos os recursos interpostos não forem acolhidos sobre a questão controvertida, é o julgado daí resultante que prevalecerá para a constituição ou desconstituição do direito. Assim deverá ser cumprido. Não se pode negar que é substanciosa a invocação de que as causas de inelegibilidade só devem ser impostas se decorrido um ano de vigência de sua instituição. Parece ser escusável, entretanto, que elas não sejam normas de processo eleitoral. Processo eleitoral é, resumidamente, o complexo de sistemas que se inicia com o alistamento eleitoral, passa pelo registro de candidaturas, pela apuração de votos e vai até a proclamação dos eleitos.

Se o direito de candidato se constituiu antes do advento da lei, o que se depreende é que as novas causas de inelegibilidade não podem atingi-lo. Mas, ao contrário, se prevalecer a retroatividade da norma, o que se dirá da garantia constitucional de que a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. É evidente que a LC nº 135, ao introduzir novas causas de inelegibilidade, alterou a situação jurídica consolidada de candidatos a que a elas não se vinculariam. Assim sendo, tiveram seu direito preexistente vulnerado. Torna-se óbvio que as novas disposições advindas mexem com o processo eleitoral material. Basta isso para entender que, por mais que se aplauda a justeza das novas regras, não podem elas se aplicar no desenrolar das eleições de outubro. Fico, por ora, apenas nesses tópicos.

Finalmente, se o STF, o que não é implausível, chegar à conclusão de que a Lei da Ficha Limpa não tem aplicação imediata, candidaturas de Brasília, cujas impugnações foram julgadas procedentes no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), poderão ser restabelecidas. O candidato presidencial do PSDB, que capenga nas pesquisas, ordenou que o diretório local da agremiação fizesse aliança com o PSC. Achou que, com o apoio do ex-governador da cidade, faturaria alto. As pesquisas estão a revelar que perde. Se a impugnação do candidato for confirmada pelo TSE, pode ocorrer que seja depois reposta pelo STF. O ex-governador lidera as pesquisas e pode ganhar as eleições. Serra sempre quis seu apoio, mas de longe. Tinha, e deve ter ainda, receio de que o contágio num mesmo palanque comprometa sua imagem. Os adversários poderiam explorar o fato. O mais provável é que quem sempre foi tido como um ficha suja se eleja e quem sempre foi tido como um ficha limpa perca mais vez a campanha para presidente da República. São os reveses da política e podem ser os desígnios da Justiça.