Título: O governo não desistiu do câmbio
Autor: Garman, Christopher ; Padovani, Roberto
Fonte: Valor Econômico, 26/05/2011, Opinião, p. A13

Com a aceleração inflacionária recente na América Latina e na Ásia, tem sido comum a leitura de que os governos deixarão o câmbio se apreciar, compensando parte dos efeitos das altas de preços de commodities. A lógica desse argumento é que os políticos estariam menos sensíveis aos impactos negativos da apreciação cambial sobre a competitividade do país em virtude da necessidade de se combater um inimigo mais importante, a inflação.

O mesmo raciocínio tem sido aplicado ao Brasil. Há um quase consenso no mercado financeiro de que a política cambial permitirá taxas mais apreciadas a partir de agora. De fato, a presidente Dilma Rousseff tem afirmado publicamente a prioridade do combate à inflação.

Do ponto de vista econômico faz sentido apostar em uma mudança de estratégia da política cambial. Não apenas o câmbio reduz as pressões inflacionárias, mas os fundamentos econômicos sugerem um real forte. A liquidez global, os preços de commodities, o risco econômico e os diferenciais de juros e crescimento abrem espaço para uma moeda mais apreciada.

Além disso, em um contexto de necessidade de financiamento externo com incerteza global, medidas mais fortes de controle de capital são arriscadas. Uma alta nos juros internacionais ou um aumento da aversão ao risco global podem diminuir a atratividade da economia brasileira e elevar o risco do financiamento do déficit em conta corrente. Da mesma forma, os custos fiscais da manutenção de reservas internacionais elevadas não são desprezíveis. Sem soluções extremas, o arsenal e a eficácia de medidas se esgotam com o tempo: os mercados antecipam fluxos e passam a atribuir maior peso aos fundamentos que à capacidade de intervenção do governo.

Politicamente, no entanto, é prematuro supor que a luta contra o câmbio apreciado e a estratégia intervencionista tenham chegado ao limite. Há vários indícios de que o "DNA" deste governo o torna sensível ao câmbio. A indústria brasileira, que já vem sendo pesadamente penalizada pelas baixas condições de competitividade sistêmica do país, assiste a uma queda importante na rentabilidade de suas exportações. Diferentemente do agronegócio, os preços internacionais não são favoráveis. O setor industrial, além disso, percebe um aumento da competição local com o aumento das importações. Os temas da desindustrialização e da doença holandesa, ainda que inconclusos, são cada vez mais populares dentro e fora do governo.

Além da preocupação com a competitividade, o Banco Central tem seguido um debate internacional e defendido a tese de que o controle cambial atende a demandas prudenciais: ingressos excessivos de capitais tornam câmbio e crédito vulneráveis a mudanças de humor externas, podendo gerar impactos indesejados sobre o crescimento.

Desse modo, embora a inflação tenha mudado o discurso oficial, é cedo para dizer que as preocupações com o crescimento e a indústria já estejam em segundo plano. Mesmo que se tenha deixado de defender um patamar específico para a taxa de câmbio, dificilmente se desistiu da luta contra o real forte em nome do combate à inflação. O receio de se adotar medidas mais drásticas de controle de capital diante de um cenário externo incerto pode ter convencido o governo a aceitar, momentaneamente, um câmbio mais apreciado. Isso é diferente de dizer que a política cambial foi alterada de forma coerente, em nome do combate à inflação.

Um bom exemplo da falta de consenso dentro do governo sobre o tema cambial é o fato de o Ministério da Fazenda e o BNDES continuarem propondo medidas para conter a apreciação da moeda mesmo com a inflação já tendo se transformado em tema popular.

Novas ações no câmbio, no entanto, dependem tanto do comportamento da moeda quanto do desempenho da popularidade do governo. A democracia brasileira, refletindo a experiência internacional, tem ensinado que as condições de renda são centrais para explicar os níveis de aprovação do governo. Com o mercado de trabalho aquecido, o aumento da ocupação tem compensado, até agora, a corrosão inflacionária dos salários, preservando o crescimento da renda real. Com isso, a presidente ainda reúne capital político suficiente para aceitar taxas mais elevadas de inflação, permitindo uma postura intermediária entre os incentivos políticos e econômicos. Por um lado, procura controlar o câmbio nominal e atende a demandas localizadas. De outro, aceita uma inflação mais elevada e conduz a uma apreciação em termos reais silenciosa, disfarçada e politicamente palatável.

Para que haja uma guinada na política cambial e se aceite a livre apreciação da moeda, seria preciso que a inflação corroesse de modo relevante o poder aquisitivo da população e a popularidade do governo. Não parece ser o caso ainda.

A tese de que o pior já passou vem ganhando adeptos e reduzindo o senso de urgência no combate à inflação. Da mesma forma, dificilmente a aprovação do governo sofrerá queda mais aguda. Com isso, a "calmaria" na questão cambial pode ter sido algo temporário. O governo não desistiu do câmbio.

Christopher Garman, diretor para a América Latina do Eurasia Group