Título: Argumentos frágeis apoiam sigilo eterno de documentos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2011, Opinião, p. A12

Há pouco mais de um ano, o mundo conviveu com o vazamento de dezenas de milhares de documentos sigilosos da diplomacia americana. Nem por isso a política externa dos Estados Unidos sofreu danos irreparáveis, quando os telegramas foram publicados no WikiLeaks e vários jornais do mundo todo se associaram à empreitada de esmiuçar o conteúdo dos papéis emitidos por agências do Departamento de Estado localizadas ao redor do globo. Na realidade, a diplomacia informaria, mais tarde, ao Congresso americano que a divulgação dos papéis fora sem dúvida embaraçosa, mas não causara prejuízos.

O exemplo do tsunami digital que parecia ameaçar de morte a diplomacia americana vem bem a calhar no momento em que o governo brasileiro sinaliza apoio à proposta de manutenção do sigilo eterno de papéis governamentais classificados como ultrassecretos. Trata-se de um enorme recuo em relação ao projeto de Lei de Acesso à Informação aprovado ano passado na Câmara dos Deputados, que estipulou em 50 anos o prazo máximo em que esses papéis devem ser mantidos longe dos olhos da sociedade. Enfim, um retrocesso, ao que tudo indica, resultado da pressão exercida por dois ex-presidentes da República, José Sarney e Fernando Collor de Mello, atualmente peças-chaves no esquema de apoio ao Palácio do Planalto no Senado.

Evidentemente nem tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, mas os bons exemplos da democracia americana não devem ser menosprezados. Um deles é o bom costume de a sociedade americana ter o direito de ficar sabendo o que seus governantes fazem ou dizem no exercício do cargo público.

Os documentos do WikiLeaks referem-se a episódios recentes, sensíveis e que ainda causam nervosismo nas relações internacionais. Prova disso é a revelação de que líderes da Arábia Saudita em algum momento sugeriram que o governo americano adotasse uma posição militar contra o Irã.

Nesse contexto, os argumentos de Sarney e Collor soam pueris: eles afirmam temer "abrir feridas" na história. Quase sempre a história é referida como argumento em relação ao pretérito distante, mas o que o governo e os ex-presidentes parecem querer manter sob latência é o passado recente, bem recente.

O recuo do governo, especialmente de um governo do PT chefiado por uma presidente da República com história no combate à ditadura, é um tapa na face dos familiares de centenas de desaparecidos políticos do regime militar. Órfãos de uma ditadura aos quais se nega inclusive o corpo das vítimas. Isso num momento em que nosso já longevo período de transição democrática parecia acertar os ponteiros, com o entendimento para a constituição da Comissão da Verdade, o capítulo final de um enredo que alguns vizinhos, como é o caso da Argentina, escreveram a um preço bem mais elevado que o simples reconhecimento da prática de tortura e outros crimes já anistiados.

Os temores do Itamaraty, nos quais também se escudam Sarney e Collor, parecem ainda mais grotescos. Difícil imaginar o dano que possam provocar à diplomacia brasileira revelações sobre acontecimentos centenários como a Guerra do Paraguai ou as negociações do Barão do Rio Branco para a incorporação do Acre ao território pátrio. Esses documentos, protegidos pelo sigilo eterno, podem até causar embaraços e constrangimentos, como causaram aos EUA os vazamentos do WikiLeaks, mas certamente nada incontornável para a relação e a harmonia entre as Nações do continente.

Atualmente, o tempo de sigilo de documentos classificados de ultrassecretos é de 30 anos, prorrogáveis indefinidamente pelo presidente da República. Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso um projeto que muda a Lei de Acesso à Informação, reduzindo para 25 anos o tempo de sigilo dos papéis, sem no entanto alterar o critério das prorrogações. A Câmara, em acordo com o governo, limitou esse prazo a 50 anos, concedendo apenas uma reedição do sigilo. Um avanço aplaudido não só pelos familiares dos ativistas contrários ao regime militar, mas também por historiadores e a sociedade de um modo geral. Ao recuar, o governo apenas expõe a fragilização de sua base de apoio no Congresso.