Título: Narcotráfico cresce no Peru e ameaça fronteira do Brasil
Autor: Saccomandi, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 31/05/2011, Internacional, p. A11

De Lima O narcotráfico está em forte crescimento no Peru, mas o tema está passando ao largo das campanha eleitoral. Agora em junho, a ONU deve apontar o país como o maior produtor mundial de cocaína, superando a Colômbia. E, segundo fotos de satélite, a produção da folha de coca, antes concentrada nos vales andinos, já chegou à Amazônia peruana, bem perto da fronteira com o Brasil. Mas nenhum dos dois candidatos à Presidência tem propostas claras de como enfrentar o narcotráfico. Esse é o assunto que mais preocupa o Brasil na relação com o Peru. As autoridades brasileiras já perceberam a escalada do problema na extensa fronteira de quase 3.000 km entre os dois países. Em novembro, na região da tríplice fronteira com o Peru e o Colômbia, houve um confronto com traficantes peruanos e dois policiais federais brasileiros foram mortos. Em janeiro, a Polícia Federal capturou o peruano que chefiava o tráfico do lado peruano, numa operação na qual novamente houve confronto armado.

"O narcotráfico vive um momento de apogeu no Peru. Isso começou em 2008, quando se sentiram no Peru os efeitos do combate ao narcotráfico na Colômbia", disse Jaime Antezana, principal pesquisador peruano de questões relacionadas.

Ele teme que o país sofra um duplo processo de colombianização e mexicanização. Por colombianização, ele entende a infiltração de pessoas ligadas ao narcotráfico na política e nas instituições públicas. Por mexicanização, a formação de poderosas milícias do narcotráfico que poderiam enfrentar as forças de segurança.

egundo Antezana, com as eleições deste ano já se pode falar de uma "narcobancada" no Congresso, com entre 10 e 15 congressistas, e de narcoprefeitos pelo país. Ele não citou nomes. Pablo Escobar, o famigerado líder do cartel colombiano de Medellín, chegou a ser senador. Antezana relata ainda o crescente número de confrontos armados graves entre traficantes e as forças de segurança peruanas; foram 8 em 2009 e 11 em 2010.

Apesar disso, o tema mal é abordado na campanha eleitoral, que se encerra com o segundo turno presidencial, neste domingo. No último debate, anteontem, os dois candidatos fizeram promessas vagas de reforçar as forças de segurança e atacar a lavagem de dinheiro para combater o narcotráfico, mas pesam sobre eles graves incertezas.

Keiko Fujimori é filha do ex-presidente Alberto Fujimori, em cujo governo foi montado um esquema de narcotráfico dentro do Estado peruano, liderado pelo então chefe do serviço secreto, Vladimiro Montesinos. O ex-presidente e Montesinos estão presos, mas muitos peruanos temem que um eventual governo Keiko seja tomado por gente ligada ao seu pai.

Ollanta Humala, um ex-militar, promete mais recursos aos militares para combater o tráfico, mas ao mesmo tempo acena com vários benefícios aos produtores de folha de coca, inclusive um perdão para a produção além do limite legal, que acaba virando matéria-prima para a cocaína.

No Peru, assim como em outros países andinos, existe uma produção legal de folha de coca, usada para consumos tradicionais, como o chá de coca ou mascar a folha, hábito muito difundido nas áreas mais altas do país.

No ano passado, a ONU já apontou o Peru como o maior produtor de folha de coca do mundo. Segundo relatório da ONU, em 1999 o país tinha 38 mil hectares de área plantada de coca. Em 2009, eram 60 mil hectares, contra 59 mil na Colômbia. Mas, devido a diferentes técnicas de processamento da folha, a Colômbia ainda reteve a liderança no potencial de produção de cocaína.

Este ano, com a continuada repressão ao cultivo na Colômbia, a produção da folha no Peru deve superar em muito a colombiana. Com isso, o país deve assumir o primeiro lugar na produção de cocaína.

O mais importante, porém, é o incremento da produtividade. "Em 2000, estima-se que o Peru produzia 43 mil ton de folha de coca. Já em 2009 teriam sido 128 mil ton. Houve mudanças importantes nas técnicas de produção. Não é mais aquela produção artesanal, com uma planta aqui, outra ali. Hoje usam-se técnicas de cultivo modernas, fertilizantes", disse Antezana. Ele estima que o potencial de produção de cocaína no Peru tenha passado de 141 toneladas, em 2000, para 317 toneladas em 2007.

O narcotráfico no Peru era tradicionalmente dominando por colombianos, que compravam a pasta-base peruana. Mas, por volta de 1995, os cartéis colombianos começam a ser desmantelados. "Em 2000, chegam ao Peru os mexicanos. Há uma correlação entre essa chegada e o crescimento do cultivo de coca. Os mexicanos não querem a pasta-base, eles compram a cocaína. E têm duas exigências: alta qualidade, o que levou a um aperfeiçoamento dos laboratórios no Peru, e alto volume", diz Antezana.

As autoridades peruanas ainda não acreditam na formação de cartéis no país. "São os colombianos e mexicanos que vêm aqui negociar a droga para distribuí-la", afirmou o ex-candidato presidencial Pedro Pablo Kuczynski.

Mas Antezana não está tão seguro disso. Segundo ele, já há a formação de clãs que controlam a produção em áreas do Peru. Além disso, grupos peruanos controlam a distribuição de cocaína na periferia de Buenos Aires e disputam o controle no Paraguai, o que poderia ser o embrião da formação de cartéis peruanos. "No Brasil, a distribuição é feito por grupos brasileiros", diz ele.

"Entre 2005 e 2007 houve uma série de choques entre a polícia argentina e clãs peruanos. Isso significa que já eram organizações fortes e poderosos, que podiam enfrentar as forças de segurança argentinas", diz Antezana. "Há o risco de que surjam no Peru organizações que controlem toda a cadeia da cocaína."

Segundo uma autoridade brasileira, que pediu para não ser identificada, o combate ao narcotráfico pelo governo peruano é precário e ineficaz. Chega a faltar gasolina para veículos das forças de segurança. "Não temos um Estado lutando contra o narcotráfico. Há uma sensação de impunidade aqui", disse Antezana. "Por isso, a produção da cocaína está migrando para cá."

O governo peruano nega a condescendência com o narcotráfico e diz que a repressão na Colômbia é mais eficiente devido à forte ajuda financeira e técnica dos Estados Unidos. E alega que Washington se preocupa menos com o Peru, pois a droga peruana vai principalmente para a Europa e países sul-americanos, enquanto que a Colômbia abastece primordialmente o mercado americano.

No início de seu governo, o atual presidente peruano, Alan García, chegou a sinalizar com uma política de forte combate ao narcotráfico, mas esse ímpeto cedeu depois da aprovação pelo Congresso americano do acordo de livre comércio entre EUA e Peru, no final de 2007.

Esse forte incremento do narcotráfico no Peru preocupa o governo brasileiro. "As plantações de coca estão chegando à região de fronteira com o Brasil, a área conhecida como trapézio amazônico. Detectamos várias plantações do lado peruano, em fotos por satélite", disse outra autoridade brasileira, que também pediu para não ser identificada.

Ainda não está claro o que fez a produção chegar à Amazônia peruana. Em geral, as folhas produzidas na selva tem um teor de alcaloide, princípio ativo da droga, menor que as folhas produzidas nos vales andinos.

Antezana diz que isso pode ter ocorrido para facilitar o contato com traficantes brasileiros que visitam regularmente a região de fronteira. Autoridades brasileiras especulam ainda que pode se tratar de uma espécie de coca melhorada, que teria um teor alto de alcaloide mesmo plantada na selva. Ainda não foram feitas operações de erradicação na região, de modo que não se conhece a planta.

"Muita gente crê que se pode conviver com o narcotráfico. Por isso, não é um tema importante na campanha eleitoral", disse Antezana. "Mas basta ver o que está acontecendo no México."

Além de atuar na repressão na fronteira, Antezana espera do Brasil uma ajuda maior na luta contra a pobreza nas regiões produtoras de coca no Peru. "Se não houver uma política de desenvolvimento econômico e social da zona andina, o combate ao narcotráfico não é sustentável."

Um executivo de uma grande empresa brasileira concorda com essa avaliação e cita as quatro hidrelétricas no Peru (duas em construção e duas em fase de projeto) que devem vender parte de sua energia ao Brasil. "Essas obras vão gerar muitos empregos em regiões pobres e produtoras de coca."

Um autoridade brasileira cita ainda a construção da rodoviária interoceânica, que ligará a região central do Peru ao Acre, como um novo eixo de desenvolvimento. Apesar de a rodovia não estar completamente pronta (falta uma ponte, que deve ser inaugurada até julho), o movimento do lado peruano já atingiu a meta prevista para 2013.

Antezana, porém, está pessimista. "Vejo um câncer se instalando silenciosamente no meu país, e ninguém faz nada."