Título: A vida sem Doha
Autor: Bhagwati, Jagdish
Fonte: Valor Econômico, 31/05/2011, Opinião, p. A13

Em recente comentário, baseei-me no Relatório Preliminar do Grupo de Alto Nível de Especialistas em Comércio, nomeados pelos governos da Grã-Bretanha, Alemanha, Indonésia e Turquia, do qual sou um dos presidentes, para explicar por que é importante concluir a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, desenvolvida ao longo de 10 anos. Meu artigo foi reproduzido em um blog mantido pela Sociedade de União e Confiança dos Consumidores (CUTS International), hoje a mais importante ONG nos países em desenvolvimento, e resultou numa torrente de reações. A torneira ainda está aberta e o debate levantou críticas que devem ser respondidas.

Alguns críticos apressaram-se a declarar que Doha está morta , na verdade, em declarar que eles, sendo inteligentes, já haviam dito isso anos atrás. Presumivelmente, nossa tentativa de ressuscitá-la foi patética e irremediável. Mas, se Doha está morta, é preciso perguntar por que os negociadores estão ainda negociando e por que quase todos os líderes do G-20 continuam manifestando seu endosso às negociações a cada vez que se reúnem.

Outros argumentaram que Doha já estava morta enquanto negociada. Ou, nas palavras do ex-representante de Comércio dos EUA, Susan Schwab, escrevendo na "Foreign Affairs", as negociações de Doha estavam "condenadas" e prontas para serem sepultadas. Entretanto, esses críticos julgavam ser possível pilhar o cadáver e salvar um "Plano B", embora o que tenha sido proposto, em suas muitas variantes, sempre uma pequena fração do pacote negociado até então deveria mais precisamente ser denominado Plano Z.

Parecia uma ótima ideia: melhor alguma coisa do que nada. Mas, em conversas multifacetadas que abrangem diversos setores (por exemplo, agricultura, manufaturados e serviços) e diversas regras (como antidumping e subsídios), os países negociaram concessões mútuas em várias áreas. Qualquer que seja o equilíbrio de concessões alcançado, será desfeito caso tentemos conservar um deles e desistir de outro.

Como ressaltou Stuart Harbinson, ex-assessor do diretor geral da OMC, Pascal Lamy, as barganhas sobre o que deveria migrar para o plano B seriam tão acaloradas quanto as discussões sobre como concluir o pacote Doha inteiro.

Alguns dos críticos estão mal-informados. O Relatório Bhagwati-Sutherland documenta amplamente que muito já foi acordado em todas as principais áreas. Como disse Lamy, quase 80% do "cozido" está pronto, faltam apenas os temperos adicionais dos atores principais - Índia, União Europeia, EUA, Brasil e China. Esses podem ser adicionados de forma politicamente palatável, o que também significa que a conclusão de Doha está ao nosso alcance, e não fora de nossas possibilidades.

Se Doha fracassar, dizem alguns, a vida vai continuar. Isso é verdade, claro, porém isso não torna essa visão menos ingênua.

Se a Rodada Doha fracassar, a liberalização do comércio seria deslocada da OMC para acordos preferenciais de comércio (PTAs em inglês), que já estão se disseminando como epidemia. Mas, se os PTA forem a única opção disponível, a restrição implícita a barreiras comerciais contra terceiros países, prevista no Artigo 24 da OMC, que é fraca, mas real, desapareceria completamente. A OMC se apoia em duas pernas: liberalização não-discriminatória do comércio e formulação e aplicação uniformes. Com a eliminação da primeira, a mais importante instituição do livre comércio mundial resultaria aleijada.

Isso também afetaria a perna sobrevivente, porque os PTA cada vez mais assumiriam também as funções de definição das regras. Isso já pode ser visto nos PTAs cujas regras sobre temas convencionais, como antidumping, são frequentemente discriminatórias em favor de determinados membros. Isso também se reflete no número crescente de provisões não relacionadas com o comércio que estão sendo inseridas nos tratados PTA propostos pelos EUA e pela UE, como resultado de lobbies que buscam extrair concessões de parceiros comerciais mais fracos, sem o que o livre comércio, significaria, supostamente, "comércio desleal". Essas regras são, então, anunciados como "de vanguarda", sugerindo que os PTA são a "vanguarda" das novas regras.

Como resultado, o empenho dos membros da OMC em invocar o Mecanismo de Solução de Controvérsias " ponto de honra da OMC e, certamente, da governança internacional " também seria minado. Os tribunais estabelecidos no âmbito dos PTA passariam a presidir, levando à atrofia e eventual irrelevância da DSM.

Podemos viver sem a Rodada Doha, mas para muita gente isso não mereceria o nome de vida. Não é hora, agora, para complacência cínica.

Jagdish Bhagwati é professor de Economia e Direito na Universidade Columbia e pesquisador sênior de Economia Internacional no Conselho de Relações Exteriores. Atualmente, é co-presidente do Painel de Pessoas Eminentes, da UNCTAD, sobre ?Globalização Centrada em Desenvolvimento?. Copyright: Project Syndicate, 2011.