Título: Calote muda de endereço
Autor: Pires, Luciano
Fonte: Correio Braziliense, 19/08/2010, Economia, p. 14

Brasileiros trocam os pré-datados pelo cartão e volume de cheques sem fundos cai ao menor nível para meses de julho desde 2004: 1,74%. Mas cresce atraso nas faturas do crédito

Os voadores estão em baixa. Com opções de pagamento mais práticas e de longo prazo à mão, o mau pagador despejou na praça, em julho, menos cheques sem fundos. A quantidade de borrachudos devolvidos por falta de saldo foi a menor para o mês desde 2004, conforme dados divulgados ontem pela Serasa Experian. De um universo de 92 milhões de ordens emitidas pelos consumidores, 1,6 milhão (1,74% do total) bateram e voltaram em julho de 2009 foram 2,21%. Antes, o menor índice apurado foi em julho de 2004, com 1,56% de devoluções. O baixo percentual é reflexo da migração do calote para o cartão de crédito.

Comparado ao mesmo período de 2009, entre janeiro e julho deste ano houve redução de 9,8% no volume de compensações de cheques pela rede bancária. Isso indica que as pessoas estão, aos poucos, abandonando o talão. As devoluções, no entanto, recuaram bem mais (26,9%), o que, de acordo com os técnicos que elaboraram a pesquisa, demonstra melhora na qualidade do cheque. Com o endividamento em alta, crescendo acima da massa salarial, o consumidor procura alternativas que lhe proporcionem flexibilidade na amortização de suas dívidas, resumiu a entidade no comunicado oficial.

Carlos Henrique de Almeida, assessor econômico da Serasa Experian, adverte que o fenômeno tem como pilares o bom momento econômico experimentado pelo país e a necessidade do brasileiro de esticar a conta. O cheque está se tornando cada vez mais representativo para compras à vista. O pré-datado perdeu espaço para o cartão de crédito. A pessoa olha muito para o que ela tem disponível no momento para rolar a dívida. No cartão, às vezes, a preferência é por pagar o mínimo (crédito rotativo), reforçou. Por causa dos juros elevados, essa fatura parcial que mês a mês vem sendo empurrada só aumenta.

A inadimplência cresce puxada pelas compras realizadas a crédito. Na corrida por mais prazo e parcelas menores, as pessoas têm apertado o quanto podem o orçamento doméstico. De junho para julho, conforme a Serasa Experian, o atraso no pagamento do cartão saltou 4,4% respondendo por 1,4 ponto percentual do salto total de 1,5% do calote. No confronto de julho deste ano com o mesmo mês do ano passado, a inadimplência avançou 3,9%. Na média, o débito em atraso é de R$ 384,37, ante R$ 1.230,23 dos cheques sem fundo e de R$ 1.324,09 dos empréstimos bancários.

Em 2009, 1,2 bilhão de cheques foram compensados. O ranking de meios de pagamento mais utilizados no Brasil aponta o dinheiro vivo como o carro chefe, seguido pelo cartão de crédito, cartão de débito e pelo cheque. Almeida acredita que as folhinhas continuarão a ocupar posição de destaque no imaginário do consumidor, embora sua importância caia a ritmo acelerado. Uma pessoa que comprou uma televisão em 12 vezes no cartão para ver a Copa do Mundo e naquele mês não tem dinheiro para honrar o pagamento quita o mínimo se tiver adquirido o bem no cartão. Com o cheque, mesmo parcelado, isso não acontece. O pagamento da parcela é integral, justificou o especialista da Serasa Experian.

Novos devedores Marcel Solimeo, economista-chefe e superintendente geral da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), alerta que a tendência de queda verificada nas estatísticas de cheques sem fundos está diretamente relacionada à expansão da inadimplência do cartão de crédito. Segundo ele, o mercado, as financeiras e os bancos escancararam as portas, absorvendo consumidores que até então não tinham familiaridade alguma com compras a prazo que não fossem feitas com cheque. A taxa de expansão do cartão de crédito é muito forte no país. Está havendo o ingresso de muita gente que nunca teve acesso a essa modalidade, reforçou.

Não por acaso, a maior parte dos devedores é formada por novatos. De acordo com Solimeo, os pagamentos em atraso na modalidade cartão de crédito atingem o consumidor sem experiência em parcelar compras utilizando esse meio de pagamento. Empolgado com a novidade, acrescenta o analista, o usuário acaba entrando em um ciclo vicioso de contas que nunca fecham. Os novatos têm uma inadimplência muito maior do que os antigos porque ainda não sabem exatamente como funciona o cartão. É algo a se preocupar, ainda que o processo de aprendizado seja relativamente rápido, completou.

Os relatórios mais recentes do Banco Central sobre crédito e inadimplência revelam, mais cedo ou mais tarde, os buracos abertos na conta-corrente acabam sendo cobertos pelo cheque especial um dos tipos de empréstimos mais caros. Atualmente, os brasileiros devem R$ 17,9 bilhões no crédito atrelado à conta-corrente. O rombo do cartão está em R$ 28,5 bilhões. Na tentativa de coibir abusos e estancar os riscos de um superendividamento alimentado pelo uso do cartão de crédito, o Ministério da Justiça e o Banco Central decidiram intervir no setor. O objetivo é reduzir a quantidade de tarifas cobradas, oferecendo ao cliente maior transparência e condições de defesa em caso de abusos. Os juros cobrados pelas administradoras dos cartões chegam a até 600% ao ano.