Título: Revoltas são incapazes de desalojar Assad e Gadafi
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/06/2011, Opinião, p. A14

As revoltas no mundo árabe não conseguiram ainda romper a resistência de seus regimes mais fechados. Depois de quase três meses de bombardeios pelas forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o ditador Muamar Gadafi não perdeu poder ofensivo decisivo e a situação líbia caminha para o seu pior cenário: uma longa guerra civil, sem vencedores, com divisão territorial clara das forças em choque. Na Síria, há uma incipiente organização dos movimentos contra o ditador Bashar Assad, mas seu progresso é lento diante da feroz repressão militar, que já fez mais de 1.300 vítimas e que não recua diante de nenhum obstáculo em sua tarefa de eliminar todo e qualquer adversário. Na Arábia Saudita, o regime aparentemente calou qualquer manifestação contrária. No Iêmen, há um embate indeciso de forças: as manifestações contra o governo são intensas, e a repressão tem sido suficiente para contê-las, mas não impedi-las.

As diferenças entre a situação síria e a líbia iluminam as contradições em que se enredaram as potências europeias e americana. Sob um mandato da Organização das Nações Unidas de proteção à população civil, para evitar uma sangrenta retaliação de Gadafi que certamente ocorreria, o uso das forças militares teve até agora o objetivo de impedir também que as forças oficiais esmaguem rebeldes inferiormente armados e treinados. Com isso, a intervenção externa ficou em um meio caminho perigoso, do qual terá de se desvencilhar logo. Não há dúvida de que, para que o perigo de um banho de sangue na Líbia seja afastado, Gadafi precisa deixar o poder. Para isso, o próximo passo militar lógico seria o armamento, treinamento e financiamento das forças oposicionistas, passos que a aliança, que tem os EUA na retaguarda, não pode e provavelmente não queira dar sem sérios problemas políticos.

Com isso, o papel das forças da Otan se resume a garantir um status quo que, sem uma intervenção mais profunda, se perpetuará. Gadafi tem superioridade militar, mas não consegue dizimar a rebelião. As sanções econômicas certamente têm efeito, especialmente depois que a produção de petróleo líbia, que era de até 1,6 milhão de barris por dia, caiu a 200 mil com o conflito e, segundo especialistas da Agência Internacional de Energia, não voltará a se normalizar até 2015. Ainda assim, essas sanções levam tempo para dar frutos e Gadafi, enfraquecido, ainda é suficientemente forte para defender à bala seu poder.

Por outro lado, a intervenção externa, para ser decisiva, precisa ser maior e, se vitoriosa, significará até certo ponto a imposição de uma duvidosa democracia por meio da força bruta. Além disso, os defensáveis objetivos iniciais da operação perdem sua aura ao deixar de ser princípios para se amoldar a conveniências passageiras.

Assad é um ditador igualmente sanguinário, que não tem o menor escrúpulo em empregar a violência contra os sírios e tem promovido massacres até agora. Contra ele há reprimendas e pressões verbais dos EUA e Europa, o bloqueio de algumas contas do ditador e nada mais. Por seu papel no Oriente Médio, Assad tem mais apoio político no complicado xadrez da região do que Gadafi, que não era bem-visto pelos próprios líderes árabes. A posição brasileira ao tentar impedir até mesmo uma resolução, condenando as atrocidades praticadas pelo líder sírio em nome de um diálogo e tentativas de dissuasão que Assad não cogita, parece não ter mudado tanto em relação ao governo anterior, quando se bajulava ditadores.

Os acenos à conciliação feitos por Assad morrem na metade dos discursos em que são anunciados. No dia seguinte à anistia concedida há algum tempo, as prisões do regime se encheram novamente de opositores. Ele não consegue enxergar outra coisa nas manifestações de repúdio ao longevo reinado de sua família que não seja obra de "sabotadores" que se espalham como "germes". E deixa claro que a volta à normalidade nada mais é que a retomada do status quo antes do início das revoltas.

O crescimento da oposição mesmo diante de massacres cotidianos pode ter um desfecho ruim para Assad, embora não muito provável. Ele pode forçar uma divisão no exército ou em sua elite dirigente que, cansada de esperar sinais de conciliação dos Assad, decida que é melhor tentar manter o poder sem ele. Sem isso, haverá um banho de sangue até o fim.