Título: Farra gringa é restrita
Autor: Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 24/08/2010, Brasil, p. 10

Parecer determina maior controle do Estado sobre as aquisições de terrenos por empresas do exterior. Governo espera combater problemas que vão da grilagem ao tráfico de drogas

Foi publicado ontem no Diário Oficial da União um despacho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aprovando o novo parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que impõe maior controle sobre a aquisição de terras por estrangeiros no país. Baseada em dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a AGU reconheceu que o Estado brasileiro havia perdido o controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento desses terrenos. O parecer equipara os empreendimentos de fora a companhias brasileiras cuja maioria do capital esteja nas mãos de forasteiros não residentes no país ou de empresas estrangeiras não autorizadas a operar no Brasil.

A ausência de controle dessas aquisições teria gerado a valorização excessiva do preço da terra, a expansão da fronteira agrícola em áreas de proteção ambiental, o aumento da grilagem e da venda ilegal de terrenos públicos, a aquisição de propriedades em faixas de fronteira, pondo em risco a segurança nacional, além de práticas como lavagem de dinheiro e tráfico de drogas (ver quadro).

A AGU esclarece que a nova abordagem sobre o tema surgiu a partir da crise de alimentos no mundo e da possibilidade de adoção, em larga escala, do biocombustível como importante fonte alternativa de energia. O parecer foi elaborado pelo consultor-geral da República, Ronaldo Vieira Júnior, e encaminhado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams.

O parecer revisa as regras definidas pela AGU em 1998, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, interpretando a Constituição federal de 1988. Não havia dúvidas quanto à aplicação de restrições e limites às pessoas físicas e às empresas estrangeiras previstas na Lei n° 5.709/1971. A questão se restringia à equiparação das empresas brasileiras com controle de capital estrangeiro às companhias gringas. Segundo o parecer assinado pelo consultor-geral, passados 14 anos, o novo contexto econômico mundial impunha um reposicionamento do governo federal sobre o tema.

Vieira Júnior lembrou o pronunciamento do presidente do Incra, Rolf Hackbart, em audiência pública das comissões de Agricultura, Reforma Agrária, Defesa do Consumidor e Fiscalização do Senado, em março de 2008. Para Hackbart, o sistema vigente permitia a ocupação desenfreada de terras em nível nacional por estrangeiros, mascarada legalmente, com a justificativa de serem adquiridas por empresas brasileiras. Além disso, os serviços registrais (cartórios) entendem não ser necessário a comunicação da relação dessas aquisições à Corregedoria de Justiça e ao Incra.

Insegurança jurídica A AGU havia firmado posição favorável à revisão do parecer em 2008, mas surgiram pressões contrárias, dentro e fora do governo. Naquele ano, a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa) enviou carta à então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, externando preocupação com a eventual revisão do parecer pela AGU. Tal fato poderia trazer insegurança jurídica aos investidores estrangeiros, especialmente aqueles que atuam no setor de celulose e papel. A série do Correio mostrou que a fábrica de celulose Veracel, uma associação entre a multinacional sueco-finlandesa Stora Enso e a brasileira Fibria, comprou cerca de 200 mil hectares na Bahia para plantar eucaliptos. No Rio Grande do Sul, a Stora Enso comprou 46 mil hectares na faixa de fronteira com o Uruguai e a Argentina.

As pressões e a crise econômica mundial de 2008 levaram o governo a adiar a decisão sobre a revisão do parecer. Neste ano, um grupo de trabalho formado pelo Ministério Público Federal recomendou ao governo a alteração do texto. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi orientado a exigir dos cartórios que passem a informar ao Incra a relação de propriedades de empresas brasileiras com capital estrangeiro. No mês passado, o CNJ fez a determinação aos cartórios de todo o país.

Pela legislação vigente no país, a compra de terras por estrangeiros está restrita a limites bem claros. A partir de 50 módulos de exploração indefinida (MEIs), a aquisição tem que ser aprovada pelo Congresso Nacional. Considerando o módulo máximo, com 100 hectares, esse limite estaria em cinco mil hectares. Porém, há no Brasil empresas consideradas nacionais, mas com capital estrangeiro, que são proprietárias de áreas de até 200 mil hectares.

A série de reportagens Terras estrangeiras, publicada no Correio a partir de 9 de junho, denunciou a falta de informações e o consequente descontrole do governo sobre as aquisições de propriedades pelos gringos, registrando a ocupação desordenada e dissimulada em Minas Gerais, na Bahia, no Rio Grande do Sul e em Mato Grosso. No Nordeste, as reportagens mostraram a ocupação agressiva do litoral cearense por megaprojetos turísticos, com a invasão de áreas virgens e de terras reivindicadas por comunidades indígenas, com a ajuda financeira do governo do estado.

Leia na íntegra o parecer da AGU.

Ocupações espalhadas por todo o país

O Correio denunciou, em 9 de junho, o descontrole do governo sobre a aquisição de terras por estrangeiros no país. A série de reportagens visitou cartórios em vários estados e demonstrou que as multinacionais criam empresas brasileiras para registrar suas terras. Cerca de 4,3 milhões de hectares estão oficialmente nas mão dos gringos, mas isso representaria apenas um quinto da ocupação forasteira. O cadastro de terras elaborado pelo Incra é incompleto, mas permite identificar as regiões de maior interesse das multinacionais.

A maior parte não está na Amazônia, mas nas mais produtivas terras do Centro-Oeste e do Sudeste, com destaque para Mato Grosso. Empresas asiáticas, árabes, europeias e norte-americanas investem principalmente na produção de grãos, cana-de-açúcar e algodão, além de eucalipto para a indústria de celulose. A competição com o capital internacional já elevou o preço das terras em cerca de 300% em algumas regiões no Centro-Oeste. Em Mato Grosso, a agropecuária O Telhar, com capital argentino, ocupa 180 mil hectares de terras para plantar soja, milho e algodão. A empresa foi denunciada pelo Ministério Público do Trabalho, supostamente por oferecer a seus funcionários condições de trabalho similar ao escravo.

No sul da Bahia, a empresa de celulose Veracel adquiriu cerca de 200 mil hectares para plantar eucaliptos e implantar reservas florestais. Em Unaí (MG), no Entorno do Distrito Federal, uma multinacional americana comprou a fazenda Agroreservas, com 29 mil hectares, utilizando uma subsidiária brasileira. No cartório do município, a fazenda não está registrada no livro de terras de estrangeiros. No Rio Grande do Sul, a sueco-finlandesa Stora Enso (que tem 50% do capital da Veracel) comprou 46 mil hectares em faixa de fronteira para plantar eucaliptos, com aprovação do Conselho de Defesa Nacional (CND), que se baseava no antigo parecer da AGU.

A série também mostrou a implantação de megaprojetos turísticos estrangeiros no Ceará, com o apoio do governo estadual. Nos cartórios e na Junta Comercial do estado, os empreendimentos estão registrados em nome de empresas brasileiras. (LV)

O número MÃOS ALHEIAS Oficialmente, 4,3 milhões de hectares pertencem a estrangeiros, mas estima-se que o número seja cinco vezes maior

Consequências do descontrole

Conheça os itens publicados no Diário Oficial da União de ontem sobre os problemas ocasionados com a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil:

» Expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação;

» Valorização injustificada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária, gerando aumento do custo da desapropriação para a reforma agrária;

» Crescimento da venda ilegal de terras públicas;

» Utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras;

» Aumento da grilagem de terras;

» Proliferação de laranjas na aquisição dessas propriedades;

» Incremento dos números referentes à biopirataria na região amazônica;

» Ampliação, sem regulamentação, da produção de etanol e de biodiesel;

» Aquisição de terras em faixa de fronteira, colocando em risco a segurança nacional.

Como é lá fora

Saiba como funcionam as leis que tratam do tema em dois países da América do Norte:

Estados Unidos Pela legislação federal, é obrigação do estrangeiro elaborar relatórios das aquisições de terras ao secretário de Agricultura de cada unidade federativa. Em Nova York, por exemplo, o estrangeiro deve naturalizar-se americano para possuir propriedade rural. Na Virgínia, permite-se apenas a posse não a propriedade ao estrangeiro que seja residente há mais de cinco anos. Em Iowa, as terras não destinadas à agricultura podem ser negociadas livremente; as terras destinadas à produção agrícola não podem pertencer a pessoas não residentes no estado. No Missouri, as terras destinadas à agricultura não podem pertencer a estrangeiros. Caso pessoas de outros países venham a ser proprietárias de terras agrícolas, o estado dá prazo de dois anos para que as propriedades sejam negociadas. Caso contrário, vão a leilão público.

México Nesse país também há importantes restrições. É vedado o domínio de estrangeiros na faixa de fronteira e à beira-mar. Nas demais áreas, urbanas ou rurais, os estrangeiros necessitam de autorização da Secretaria de Relações Exteriores para adquirir propriedades. Empresas mexicanas com participação de capital estrangeiro podem adquirir terras, mas sofrem restrições legais, como o limite máximo de aquisição.