Título: Lições de Henry Ford que até Chaplin captou
Autor: Olmos, Marli
Fonte: Valor Econômico, 13/07/2011, Brasil, p. A2

Raras vezes uma greve veio tão ao encontro de interesses das empresas como a recente paralisação das linhas de montagem no ABC. O motivo que levou os metalúrgicos a interromper o trabalho durante um dia na semana passada é o mesmo que hoje mobiliza os fabricantes de veículos no país: a busca do apoio do governo para evitar que a concorrência do produto estrangeiro provoque esvaziamento do parque industrial brasileiro.

A aproximação dos operários dos interesses da indústria na defesa do seu ganha-pão revela amadurecimento nas relações do trabalho. Mas, ao mesmo tempo, se mistura a táticas comuns de multinacionais que buscam preservar o espaço que cravaram num mercado importante como o Brasil. De janeiro a junho, as quatro montadoras mais antigas no país (Volks, GM, Ford e Fiat) ficaram com 71% do mercado.

Nesse cenário, surgem as ideias preconcebidas, carentes de argumentação e recheadas de preconceito contra o produto chinês; como se todos os carros feitos na China seguissem o conceito do relógio ordinário que imita Rolex.

GM e Volkswagen lideraram o mercado chinês em 2010

Quem circula nas ruas e estradas chinesas, seja em Pequim, em regiões centrais como Chengdu, ou em Xangai, reconhece carros sofisticados, outros mais simples conhecidos dos brasileiros, e também os de qualidade duvidosa. Mas não se pode negar a importância da China hoje no cenário automotivo mundial. Duvidar dessa capacidade é fechar os olhos para um modelo de manufatura consagrado, que permite produzir o mesmo veículo em qualquer parte do planeta.

As marcas líderes do mercado de veículos chinês, aliás, não têm origens no país. A maior fatia desse mercado em 2010 ficou com a americana General Motors, e a alemã Volkswagen. Juntas abocanharam 23,5% das vendas, num total de mais de 4 milhões de unidades. Com 13% - 2,266 milhões de veículos -, a GM foi a líder. Marcas genuinamente chinesas, como Chery, BYD e JAC, ficaram com menos de 3% cada uma.

Nesse cenário de alta concorrência não se podem desprezar os temores calcados no estudo sobre perda de competitividade que a Anfavea, a associação da indústria de veículos, recentemente concluiu. Além da valorização do real, o Brasil perde para vários países em comparações de custos como energia elétrica, capital e logística. Elaborada pela PriceWaterhouseCoopers, a pesquisa mostra que produzir um carro no Brasil custa 60% mais do que na China.

Mas custo não é o único guia dos investimentos. Não se produzem carros no Brasil porque já foi barato, mas, principalmente porque a demanda interna indicou potencial de crescimento que se confirmou nos cinco últimos anos, período em que o volume de licenciamento dobrou, conduzindo o país ao posto de quarto maior mercado do planeta.

A indústria automobilística se instala onde a venda justifica produção em alta escala. Fez isso nos EUA, no Japão, na Alemanha, no Brasil e tem feito, com mais vigor nos últimos anos, na China, que assumiu a liderança mundial em 2009 e em 2010 viu seu mercado interno absorver 18 milhões de veículos.

É um erro imaginar, como sindicalistas chegaram a declarar, que o Brasil corre o risco de perder linhas de produção para a China, de onde os veículos viriam, depois, importados. O argumento pode servir de ferramenta numa negociação. Mas não tem lógica na estratégia de um setor que, desde os tempos de Henry Ford, mantém as linhas próximas de regiões que combinam fartura de matéria-prima com concentração do consumo. Produzir rápido, sem estoques, e vender em seguida é uma técnica que até Chaplin mostrou em "Tempos Modernos", filme de 1936.

Quem não seguiu essa lógica se deu mal. É o caso de Honda e Toyota, que, depois do tsunami no Japão, foram obrigadas a paralisar a produção, por falta de peças de transmissão e motor que ainda importam. Isso pode servir para tranquilizar economistas ligados aos sindicatos dos trabalhadores, que demonstraram preocupação de que as instalações no Brasil passassem a servir para uma mera montagem de partes do veículo trazidas dos países de origem das montadoras.

Com mais de seis décadas de história, a indústria automotiva instalada no Brasil amadureceu o suficiente para se dar ao luxo de até desenvolver projetos de carros para os Estados Unidos. Matéria-prima farta e mão de obra qualificada completam o quadro. Falta agora, claro, como revela o estudo da Anfavea, promover a competitividade, um desafio que tem de passar por medidas macroeconômicas.

Na esperança que isso ocorra e seguindo a lógica de produzir onde há potencial de consumo, as marcas orientais mais fortes também erguem fábricas no Brasil. É o caso da coreana Hyundai, que constrói uma fábrica de grande porte em Piracicaba (SP) e da chinesa Chery, com obras em Jacareí (SP).

Todos, ao mesmo tempo, continuarão, por outro lado, tirando proveito da valorização do real para vender modelos importados. Isso inclui as empresas com fábricas no Brasil. Dos 390 mil veículos importados no primeiro semestre, a menor parte - 23,3% - foi de marcas sem fábricas no país. Os chineses ficaram com 2% dessa fatia.

A briga pelo domínio do mercado brasileiro sempre se deu entre os que produzem no país. A diferença é que a disputa entra agora numa nova fase, com mais jogadores.

Marli Olmos é repórter especial. O titular da coluna, Cristiano Romero, está em férias.