Título: Pouco talhado para agregar, Itamar custou a ser reconhecido
Autor: Nassif, Maria Inês; Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2011, Política, p. A6

Presidência: Embate com antecessores e sucessores tirou brilho de feitos como o Real e a estabilidade política

Senador, governador de Minas Gerais e presidente da República (1992-1994), Itamar Franco foi um dos políticos menos agregadores da história brasileira. Talvez por isso tenha tido um reconhecimento tão tardio de suas realizações. Esteve em conflito com seus antecessores imediatos na presidência da República, como José Sarney (1985-1990), contra quem presidiu a CPI da Corrupção - e Fernando Collor (1990-1992), com quem às vésperas do início do processo de impeachment. E também brigou com seus sucessores Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva, (2003-2010), não os apoiando em suas respectivas reeleições. A única exceção a esta crônica de rompimentos foi o senador e presidenciável tucano Aécio Neves (MG), com quem Itamar manteve uma aliança política incondicional nos últimos dez anos.A aliança se desenhou com clareza quando Itamar, então governador mineiro pelo PMDB, recusou-se em sua sucessão a apoiar o vice, Newton Cardoso e na eleição presidencial ao candidato referendado pelo seu partido, o tucano José Serra. Na ocasião, Itamar fez campanha por Aécio em Minas Gerais e Lula no plano nacional. Uma vez eleito, Aécio conseguiu costurar um acordo político para impedir que o então governador mineiro terminasse sua gestão desenquadrado da lei de responsabilidade fiscal. Fernando Henrique e Itamar haviam tido péssima relação entre 1999 e 2002, desde que o governador desestabilizou a política monetária de Fernando Henrique com uma moratória da dívida mineira.

Em dezembro de 2002, o então presidente editou uma medida provisória para ressarcir os gastos feitos pelos Estados na manutenção de rodovias federais, o que garantiu uma injeção de recursos de R$ 800 milhões ao Tesouro Estadual. Foi assim que Itamar conseguiu quitar o décimo terceiro dos servidores, entre outros pontos. Foi uma excepcionalidade que praticamente atendeu apenas a Minas - único Estado com créditos reconhecidos - e uma maneira de Fernando Henrique devolver a gentileza de 1994, quando Itamar permitiu a circulação a partir do dia do Plano Real de cédulas assinadas por FHC, que havia deixado o ministério da Fazenda três meses antes.

A aliança então forjada teve o seu último ato nas eleições do ano passado, em que Aécio, candidato ao Senado, bancou a dobradinha com Itamar, derrotando o petista Fernando Pimentel, hoje ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Ontem, no velório de Itamar em Juiz de Fora, Aécio chegou a se referir ao ex-presidente como um verdadeiro "pai". A relação entre Itamar e Aécio contrastava com a que o ex-presidente teve com o avô do senador, Tancredo Neves, presidente eleito que morreu antes de tomar posse. Sempre foram rivais.

Foi como prefeito de Juiz de Fora, no segundo ano de um segundo mandato, que Itamar apareceu para a política brasileira, pelas mãos de Tancredo. O deputado emedebista, candidato natural ao Senado, achou que o risco de concorrer a um cargo majoritário era muito grande - desde o bipartidarismo imposto pela ditadura militar, a Arena, partido do governo, era amplamente vitoriosa.

Tancredo convenceu Itamar a deixar a prefeitura e disputar a senatoria em 1974, ano em que uma onda oposicionista deu uma surra eleitoral no governo militar, levando para o Senado uma leva de desconhecidos emedebistas, entre eles Itamar. Diz a lenda que o prefeito apenas concordou com a proposta de Tancredo após ouvir o seu motorista particular na prefeitura.

O rompimento com Tancredo se efetivou em 1982, às vésperas das eleições diretas para os governos de Estado. Após o fim do bipartidarismo, o moderado Tancredo fundara o Partido Popular (PP),, mas o partido reincorporou-se ao PMDB como reação à imposição pelo Planalto do voto vinculado, isto é, a escolha, pelo eleitor, de candidatos do mesmo partido em toda a cédula eleitoral.

Tancredo saiu candidato a governador pela legenda e assim que anunciou esta decisão, Itamar, em seu gabinete no Senado, caiu em prantos: seu tapete havia sido puxado pela velha raposa cuja origem era o antigo PSD. Para Itamar, mais do que a legenda para disputar o governo, o que estava em questão era a relação de lealdade pessoal - ao longo de sua vida, muito mais importante do que qualquer coisa. Inimigos pessoais tornavam-se inimigos políticos, e vice-versa. Tancredo ficou apenas dois anos do governo e saiu para concorrer à Presidência pelo Colégio Eleitoral.

Nesse meio tempo, uma campanha pelas eleições diretas para presidente assolou o país. Com a derrota da emenda, Itamar filiou-se ao Grupo Só-Diretas, uma parcela das oposições que não admitia votar no Colégio Eleitoral, nem mesmo para garantir a vitória de um candidato oposicionista. Tancredo não teve o seu voto. Foi o troco de Itamar à "traição" do velho político mineiro.

Tancredo morreu antes de tomar posse, deixando o cargo para o ex-pedessista José Sarney. Cinco anos depois, nas eleições diretas para presidente, Itamar caiu de paraquedas como vice da chapa do franco-atirador governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello. Ambos concorriam por uma sigla de ocasião, um chamado Partido da Renovação Nacional (PRN).

O azarão Collor de Mello ganhou a Presidência, no segundo turno, derrotando o candidato petista, Luiz Inácio Lula da Silva. Itamar Franco, azarão e meio, se tornaria presidente dois anos depois, quando o Congresso declarou o impeachment de Collor depois de uma investigação de denúncias de corrupção feitas pelo próprio irmão do presidente, Pedro Collor.

Já como vice, Itamar fez públicas três suas características. Uma era a irresistível vocação para cercar-se de pessoas de confiança, quase todas trazidas de Juiz de Fora: elas formaram um staff que girava em torno do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente. A outra, uma compulsão pelo exercício da autoridade. Juntou aos amigos assessores um outro grupo de especialistas em diversas áreas, montando acompanhamento paralelo ao governo do titular do cargo. A terceira era a imprevisibilidade.

Chegou à Presidência com o discurso do antigo MDB, mas não dava sinais de que tinha projetos próprios para o país. No início do governo, em meio a grave crise política, conseguiu um amplo apoio partidário. O governo, no entanto, era a "República de Juiz de Fora", apelido mais tarde adaptado para "República do Pão de Queijo": Itamar, a autoridade, decidia, ouvindo os amigos de sua terra de adoção e mais dois eleitos, o então embaixador José Aparecido de Oliveira, e o ex-vice Aureliano Chaves, ambos mineiros.

Aos amigos, ouvia, independentemente da qualificação.

Segundo um deles, era sua característica "emprenhar pelos ouvidos". Incorporou as críticas de "caipirice" como um elogio e levou-as ao extremo, disposto a oferecer a imagem de um mandatário que mantivera a simplicidade. Contra as bravatas de seu antecessor de que os carros nacionais eram "carroças", contrapôs uma idolatria pública ao antigo "fusquinha". A Volkswagen chegou a relançar um de seus mais antigos modelos, que ficou à venda apenas enquanto Itamar esteve no poder.

Assim como cultivava as lealdades, sabia destilar o seu rancor.

Foi o único presidente da República a não ceder às pressões do coronel baiano Antonio Carlos Magalhães. ACM, após o processo de impeachment de Collor, chegou a defender publicamente a reação à posse de Itamar, sob o argumento de que ele não tinha "condições morais" para assumir o cargo. Na Presidência, Itamar incorporou ao seu ministério, na pasta do Interior, o deputado Jutahy Jr., filho e neto de Jutahy e Juracy Magalhães, inimigos do carlismo.

ACM, ao seu estilo, anunciou à imprensa que levaria um dossiê provando casos de corrupção do ministro ao presidente e marcou a audiência. Quando chegou ao Planalto, Itamar havia convocado toda a imprensa e nomeado o ministro da Justiça, Maurício Correia, "escrivão" da conversa. O presidente abriu as portas da audiência reservada. Talvez tenha sido o único momento em que ACM, especialista em desarmar presidentes, tenha sido desarmado por um deles. O anunciado dossiê nunca foi entregue à Justiça.

Foram três ministros da Fazenda (Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Resende) até que o então ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso, assumisse a Pasta, e se consolidasse como a pessoa de maior influência sobre o presidente. O Plano Real saiu nessas condições, pelas mãos de uma pessoa em quem o presidente confiava e que considerava leal. No final do seu governo, com o Plano Real, o país vivia o mais amplo período de liberdade comercial desde o início do período de substituição de importações, ainda com Getúlio Vargas. O Brasil havia conseguido debelar a inflação que lhe corroeu perversamente durante dez anos e teve o período de maior atividade econômica na década - e, além de tudo, ganhou a Copa do Mundo. Em 1994, Itamar fez de Fernando Henrique Cardoso o seu sucessor, no primeiro turno das eleições, com 54,3% dos votos válidos.

Fora do poder, Itamar veio provar que conseguia ser mais incômodo ainda. O presidente Fernando Henrique nomeou-o embaixador em Portugal e, posteriormente, representante do Brasil na OEA, em Washington, mesmo sem que o embaixador soubesse falar o inglês, debaixo de farpas do seu agora auxiliar.

Os conflitos alimentados por Itamar contra o tucano foram num crescendo até o rompimento. Ele ocorreu, enfim, quando FHC e seu governo, aliados da cúpula do PMDB, manobraram na convenção do partido para garantir o apoio da maioria à reeleição do presidente. Sem possibilidade de suceder o seu sucessor na Presidência, Itamar rumou para Minas e, pela legenda, candidatou-se ao governo. Estava imbuído de um objetivo maior, que era o de levantar em Minas uma trincheira contra "o governo neoliberal" - embora as bases da abertura econômica terem sido assinadas pelo seu próprio punho, quando presidente, nas medidas provisórias que criaram o Plano Real.

Já no Palácio da Liberdade, logo nos primeiros dias de governo, declarou a moratória da dívida estadual e colocou Minas em estado de guerra contra a União.

Meses mais tarde, forçou um "treino" militar das tropas da Polícia Militar do Estado, nas imediações da hidrelétrica de Furnas (sob a mira da privatização pela equipe econômica do governo). Seria o início de uma ofensiva contra a privatização da hidrelétrica. Quando o leilão foi marcado, Itamar chegou a ameaçar o governo federal com a ocupação de Furnas pelas forças policiais do Estado. O leilão foi retardado por decisão da Justiça e acabou no esquecimento, a bem da paz na Federação.

Após a campanha eleitoral de 2002, pouco durou a paz entre Itamar e Lula. Lula ofereceu a ele a embaixada em Roma. Itamar foi, mas antes adiou por várias vezes sua chegada a uma embaixada acéfala, o que chegou a provocar protestos por parte de jornais italianos. Em Roma, adotou uma imagem semelhante à de D. Pedro I, cultivando um bigode que se juntava ao cavanhaque, as "ruças". Pediu demissão em 2005, estrategicamente à época em que Lula era desestabilizado pelo escândalo do mensalão. No ano seguinte, passou pela humilhação de perder a candidatura do PMDB ao Senado para Newton Cardoso. Não se candidatou. Confinado a Minas, tornou-se presidente do Conselho de Administração do estatal BDMG e ganhou grande ascendência sobre a estatal de energia Cemig, cuja vinculação com a administração pública reforçou durante seu governo.

Em 2010 elegeu-se para o Senado ao lado de Aécio. Nos breves meses em que exerceu o mandato, destacou-se pela postura incisiva com que questionou os projetos e as lideranças governistas tornando-se uma das principais referências da oposição na Casa.