Título: As distorções são a normalidade
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2011, Brasil, p. A2

Os recentes eventos no mercado internacional tiveram um grande mérito: tornaram claro que classificar como "distorções" a intervenção na economia dos governos de quase todos os países é apenas manifestação idiossincrática de analistas portadores de um "modelo" que tem muito pouco a ver com a realidade.

Não se trata de um problema científico, mas de um problema estético! Definem como distorção qualquer diferença entre a beleza humana e a que veem na Vênus de Milo. Tiram consequências "normativas" de modelos abstratos.

Agora, até a Suíça pratica "distorções" e chega a pensar em ligar o franco ao euro! É óbvio que dos Estados Unidos nem é preciso falar. A Inglaterra as praticou já em 2008. A Bélgica, que é ela mesma uma "construção teórica" e padrão de liberdade econômica, junta-se às mãos "sujas" de contumazes produtores de "distorções", como a França, a Espanha e a Itália, para cometer o "crime" de suspender por 15 dias a venda a descoberto nas bolsas (papéis que o vendedor não tem ou tomou emprestado) para especular na baixa...

Tendência do setor financeiro é controlar setor real da economia

Os efeitos deletérios de tais movimentos podem ser dramáticos e têm evoluído no tempo, à medida que aumentou a velocidade das comunicações. Hoje, as consequências da propagação de um "rumor" percorrem todos os mercados do mundo em um milésimo de segundo e impedem o efetivo conhecimento do assunto, o que pode transformá-lo em realidade!

No mundo das "redes", a velocidade da comunicação e o uso de algoritmos, cuja resposta é quase instantânea, transformaram potencialmente o mercado financeiro numa arma de destruição em massa passível de ser manipulada, irresponsavelmente, pelos "proprietários" do mercado (os bancos de investimento, as financeiras, os "fundos" de toda espécie, as agências de risco, as bolsas mal reguladas etc.).

Não se trata de um problema moral, que possa ser corrigido por um "imperativo categórico" autoimposto pelos próprios agentes financeiros. Como esses não são anjos, e as vantagens monetárias (preliminar do poder econômico) são de tal ordem, o desvio sempre valerá a pena. O comportamento de tais agentes está inscrito no seu DNA, à espera de uma oportunidade para se manifestar. Quando encontra um espaço desregulado, a tendência natural do setor financeiro é submeter ao seu controle o setor real da economia, ao qual deveria servir, e apropriar-se do poder político. O recente cabo de guerra nos EUA entre o Executivo e o Legislativo para a regulação financeira mostrou quem detém, efetivamente, o poder no Congresso.

A existência de um setor financeiro sofisticado e hígido é condição necessária (mas não suficiente) para a construção de um processo de desenvolvimento eficiente, que permita a maior mobilização possível dos recursos naturais e humanos disponíveis. A crise de 2007/09 (e a que ainda está ocorrendo em 2011) mostra que o colapso do sistema financeiro leva à destruição instantânea do circuito econômico: uma dúvida de confiança produz uma descontinuidade do crédito interbancário e leva ao encolhimento do crédito para produtores e consumidores.

Todos os agentes (bancos, produtores e consumidores) procuram salvar-se, aumentando sua liquidez: os bancos liquidam seus estoques para fazer "caixa" e os consumidores cortam suas compras, com medo do desemprego. Quando todos estão "líquidos", morrem afogados na sua própria "liquidez", porque interromperam o "circuito econômico"!

É por isso que, nos momentos de crise, os governos não podem deixar quebrar o sistema financeiro. Isso não significa, entretanto, que devam poupar os agentes da destruição que se infiltram, como células cancerosas, no tecido do organismo, de cuja higidez depende todo o processo de funcionamento econômico da sociedade, em particular as oportunidades de emprego.

Agora mesmo, estamos assistindo, ao vivo, como a ação de "fundos agressivos" (que na melhor das hipóteses produzem apenas transferência de renda) estão destruindo empresas que produzem bens e serviços e criam emprego. Apertado pelas circunstâncias, um deles desovou às pressas a participação acionária que tinha numa empresa. Literalmente, "destruiu" quase 1/3 do seu capital com graves consequências para seu futuro e depois... "quebrou". A pergunta é: por que precisamos dessas roletas?

Tudo isso mostra que alguns analistas deveriam ser um pouco mais cuidadosos quando afirmam que as medidas do governo Dilma estão causando "distorções". Deveriam dar uma chance à hipótese de que talvez essa distorção esteja nas suas próprias cabeças.

Terminei a semana com conforto. Soube que o sr. Sebastian Briozzo declarou, em Nova York, que a agência Standard & Poor"s "garantiu" que os títulos do Brasil não correm o risco de serem rebaixados. Ah, bem...que alívio!

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras.