Título: Águas profundas
Autor: Machado, Antonio
Fonte: Correio Braziliense, 27/08/2010, Economia, p. 13
Brasil S/A
Correria para capitalizar Petrobras expõe exaustão do Estado para apoiar pré-sal e o crescimento
A correria do governo para fechar o processo de capitalização da Petrobras não está bem explicada pelas razões factuais, que focam os investimentos para a exploração do pré-sal. O atraso de algumas semanas ou meses não faria diferença para uma operação prevista a entrar em produção a partir de 2014 e, em regime, na outra década.
A imensa riqueza submersa na plataforma continental do país, nas contas da Petrobras, deverá adicionar até 2020 mais 3 milhões de barris/dia à produção diária atual de 2 milhões, e será quase toda exportada se a relação do consumo interno de energia por unidade de produto correr abaixo do crescimento esperado da economia.
Em termos líquidos, abatida a demanda doméstica, estima-se que o saldo para exportação será amplamente favorável, mas condicionado à expansão da oferta de etanol, às novas hidrelétricas, às fontes alternativas, como eólica e solar, e a um plano de racionalização do consumo de energia em todos os níveis nem sequer iniciado.
Sem a sintonia perfeita da matriz energética, o petróleo que sair do pré-sal será aqui mesmo queimado. Basta que a economia cresça à base de 5% ao ano até 2020 e não mude o padrão do consumo corrente de derivados do petróleo. A exportação líquida, ai, será residual.
É meio como hoje. Sem problema para a Petrobras, se puder casar a receita de exportação com as suas despesas em dólares, realizando em reais mesmo o grosso de seu resultado. Problema será do país, pois se frustrará em tal cenário a grande alavanca para a construção de maciços superavits externos o capital para catapultar a economia ao patamar de nação desenvolvida. E isso na mesma década em que as grandes potências poderão encolher em relação aos emergentes.
A equação do pré-sal, por tudo isso, é muito mais complexa do que sugere a retórica ufanista do governo. Admita-se, porém, que será conforme o previsto, com ingressos tão volumosos que problema será impedir a valorização do real. Se ela já leva a balança comercial hoje a encolher, com o pré-sal o real valorizado poderá arruinar a agricultura de exportação e a indústria instalada no país.
O antídoto é o fundo soberano, criado para reter parte da receita em divisas estrangeiras, aplicá-las fora do país e destinar a renda obtida em investimentos sociais, infraestrutura e inovação tecnológica.
No papel, tudo é belo No papel, tudo fica uma beleza. A maioria dos políticos, quando o novo regime de exploração passou pelo Congresso, se embriagou com o potencial da riqueza enterrada em alto mar, e foram à luta pela partilha dos royalties aos estados e municípios. Não há registro de apreensão para entender a dificuldade oceânica que a Petrobras enfrentará para escarafunchar o pré-sal e o custo da empreitada.
Pelos próximos vinte anos, o pré-sal será mais salgado que doce, já que, para virar dinheiro, primeiro a Petrobras terá de investir pesado US$ 214 bilhões entre 2010 e 2014, e é só para começar. E será bem sucedido se tais investimentos não sugarem as demandas de capital para a expansão de outros setores, já limitadas pelo virtual esgotamento da capacidade de emprestar do BNDES e pelo teto baixo, pelo menos por enquanto, do mercado nacional de capitais privados.
O caixa público aguou O fato de o governo capitalizar a fatia majoritária do Estado na empresa com a emissão de títulos de dívida pelo Tesouro a contrapartida financeira da cessão onerosa de até 5 bilhões de barris de petróleo das reservas da União a serem ainda exploradas , enquanto os acionistas privados entram com dinheiro vivo, único que importa à Petrobras, expõe a carência do funding público.
O governo exigiu da Petrobras mais do que ela pode investir com a geração de caixa, lucros retidos e a capacidade de se endividar. E o fez acumulado a outros megaprojetos que também vão exigir além do que já requer a própria dinâmica da aceleração do crescimento um volume de investimentos recorde, só comparável, como relação do PIB, ao do último ciclo de expansão acelerada, nos anos de 1970.
Outro modelo econômico Essa não é uma questão estritamente financeira, mas de modelo do crescimento que se quer. A polêmica da capitalização da Petrobras mostra que o financiamento público é limitado. É preciso trazer o capital privado para tais iniciativas, e redirecionar a ênfase do crescimento movido pelo consumo para o impulsionado pela dinâmica do investimento. Isso implica moderar o ritmo do gasto público e as facilidades do crédito ao consumo. Se tal transição for suave e lenta, pouco se notará. Mas será outro modelo de economia.
O lixo ou a redenção A transição para um ciclo acelerado do investimento possivelmente encontrará resistências, e exigirá extrema habilidade política do novo governo. Quem está agarrado ao Estado não vai querer ceder um centavo. Nunca cedeu pacificamente. Esse veto explícito poderá ser contornado, se o gasto público crescer abaixo do ritmo de expansão do PIB, mas sem encolher em termos reais. Dá para fazer sem doer.
Importa considerar também que o problema não se deve a Lula nem a quem o suceder. Qualquer um encontraria tais obstáculos. Eles são inerentes ao tamanho estreito da economia quando surge a tendência de pleno emprego. No passado, quando havia a asfixia cambial, quem fosse governo pisava no freio, gerando o tal para-anda responsável pelas décadas perdidas. A que vai começar não pode acabar no lixo.