Título: Brasil e periferia europeia
Autor: Pinheiro, Armando Castelar
Fonte: Valor Econômico, 02/09/2011, Opinião, p. A11

Nos últimos anos o Brasil apresentou notável progresso econômico e social, tornando-se objeto de grande interesse da comunidade internacional. A lista de indicadores com bom desempenho é extensa: por exemplo, o PIB cresceu 4,0% ao ano em média em 2003-10, contra 2,3% em 1995-2002; a taxa de desemprego caiu de uma média de 11,6% nos 12 meses findos em fevereiro de 2003 para 6,6% oito anos depois; o risco país diminuiu de 8,4 pontos percentuais (pp) em 2003 para 1,8 pp na média dos 12 meses até julho último; e o investimento direto estrangeiro subiu de US$ 10 bilhões para US$ 72 bilhões (1,8% para 3,2% do PIB) nesta última comparação.

Tanto pelos melhores fundamentos como pela natureza da crise externa, esta até aqui afetou pouco o Brasil, com a alta do PIB em 2009-10 ficando próxima à média do sexênio anterior, contrastando com o padrão de crises anteriores. De fato, pode-se até argumentar que a crise, desde que entrou em regime de agonia crônica, saindo da fase mais aguda pós-quebra do Lehman Brothers, até ajudou, mitigando o componente importado da inflação, tornando o mercado doméstico relativamente mais atraente para o investidor estrangeiro e derrubando o custo de financiamento externo.

Ainda que haja muito a celebrar, e é justo fazê-lo, também há que se reconhecer que vários fundamentos continuam fracos; em especial, deve-se ter cuidado de separar o que foi resultado de fatores cíclicos e o que reflete avanços estruturais. Nesse sentido, um exercício interessante é comparar o Brasil dos últimos oito anos com a periferia europeia pós-euro, de 1999 até 2006, quando a região também registrou progressos notáveis.

A diferença com a Espanha é que lá a crise já se instalou, enquanto aqui temos tempo para fortalecer fundamentos

Para exemplificar, tomemos o caso da Espanha. Em 1999-2006, seu PIB cresceu em média 3,8% ao ano, contra 2,3% em 1991-98. A taxa de desemprego despencou, de 18,6% em 1998 para 8,5% em 2006. O resultado fiscal primário passou de um déficit de 1,8% do PIB em 1991-98 para um superávit de 2,1% em 1999-2006, enquanto a dívida pública líquida caía de 57,4% para 30,5% do PIB entre o final de 1998 e 2006, queda para a qual também contribuiu a redução dos juros reais, de 5,0% para 1,2% ao ano entre 1991-98 e 1999-2006. Trata-se, portanto, de avanços semelhantes, senão até mais pronunciados, aos observados no Brasil na comparação de 1995-2002 com 2003-10. Ainda assim, foram insuficientes para evitar a crise por que hoje passa a Espanha.

No caso brasileiro, há três elementos de preocupação com relação à sustentação do desempenho recente: o baixo investimento, a perda de competitividade da indústria de transformação e o risco de ruptura da auto alimentada expansão do crédito às pessoas físicas, do consumo e da massa salarial real.

A taxa de investimento no Brasil é baixa e insuficiente para sustentar um crescimento elevado, especialmente se o emprego vier a crescer menos nos próximos anos, como se espera. Em 2003-10, essa taxa foi de 17,0% do PIB, a mesma de 1995-2002 (16,9% do PIB), em que pesem a alta no crescimento do PIB, nos desembolsos do BNDES (de 1,8% para 2,8% do PIB), no crédito e no investimento estrangeiro, assim como a queda do risco país. Depois de bater em 18,4% do PIB em 2010, essa taxa deve voltar a cair este ano. Na Espanha, a taxa de investimento subiu de 22% em 1991-98 para 28% do PIB em 1999-2006.

A apreciação do real e a alta nos salários levou a um forte aumento no custo da mão de obra na indústria. Considerando os salários da indústria em São Paulo, a taxa de câmbio efetiva real com nossos principais parceiros comerciais e o aumento da produtividade do trabalho, tem-se que em 2010 o custo unitário do trabalho em moeda estrangeira estava 27% acima da média de 1995-2002 e era 94% superior ao de 2002. Na Espanha, esse custo subiu 26% mais que na Alemanha de 1998 para 2006.

A perda de competitividade deveria ter elevado o déficit externo, mas isso não ocorreu por conta da alta nas commodities: se os preços de exportações e importações fossem os mesmos de 2002, quando os termos de troca estavam 3% acima da média histórica, o déficit em conta corrente acumulados nos doze meses até junho de 2011 seria de US$ 93 bilhões, doze vezes o valor de 2002.

Em 2003-10, o consumo das famílias cresceu 4,5% ao ano (5,6% em 2005-10). Esse aumento foi em parte alimentado pela alta no crédito às pessoas físicas, de 19% ao ano acima da inflação, e a da massa real de salários (4,7% ao ano). Na Espanha, o crédito às famílias aumentou 14% ao ano, em termos reais, em 1999-2006. Lá, como cá, o alongamento de prazos, a queda dos juros e o aumento da massa de rendimentos impediram que se comprometesse muito da renda com o serviço da dívida. A questão que se coloca, porém, é se não se deveria ajustar a medida de comprometimento de renda para o fato de o desemprego estar no seu menor patamar histórico, limitando a inadimplência e, portanto, os spreads bancários.

A grande diferença entre o Brasil e a Espanha é que lá a crise já se instalou, enquanto aqui ainda temos tempo para fortalecer os fundamentos. Cabe aproveitar esse tempo.

Armando Castelar Pinheiro é pesquisador do Ibre/FGV e professor do IE/UFRJ. Escreve mensalmente às sextas-feiras.