Título: Da obrigatoriedade legal à responsabilidade social
Autor: Belizário, Marcos
Fonte: Valor Econômico, 10/08/2011, Opinião, p. A14

A Lei 8.213/91, que em seu artigo 93 estabelece cotas para a contratação de pessoas com deficiência pelas empresas, completou 20 anos no dia 24 de julho. Passou-se um tempo mais do que suficiente para que o mundo corporativo estivesse, naturalmente, promovendo a inclusão desses cidadãos no trabalho formal. Mas não é isso o que, de fato, vem acontecendo. A verdade é que, ainda hoje, estamos muito aquém de uma condição sequer razoável nessa questão.Na cidade de São Paulo, 10,32% do total da população, o que significa 1.139.080 habitantes, tem algum tipo de deficiência. Destes, 749.856 estão na faixa etária que vai de 15 a 59 anos, portanto, em idade de trabalhar. Desse total, estima-se que o número de pessoas que se enquadram nos critérios da legislação vigente (incluindo os Decretos 3.298/1999 e 5.296/2004) é de 410.082.

Do outro lado, o número de vagas nas empresas oferecidas para essas pessoas não chega a 250 mil em todo o estado de São Paulo. E, em todo o país, dos 44.068.355 de empregos registrados em 2010, apenas 0,69% das vagas (306.013 empregos) são de pessoas com deficiência, conforme dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego.

É espantoso saber, por meio da atuação do Ministério Público do Trabalho de São Paulo e da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego-SP, que grandes corporações da indústria, do varejo e do setor de serviços ainda estejam pagando somas consideráveis em multas em vez de investirem na inclusão de pessoas com deficiência. Em um processo recente, movido pelo Ministério Público do Trabalho, uma única empresa foi multada em R$ 1,2 milhão.

As vagas para pessoas com deficiência não chegam a 250 mil na cidade de São Paulo para uma demanda de 410 mil

Claro que a contratação de pessoas com deficiência exige algumas condições, como promover a acessibilidade no posto de trabalho e a capacitação tanto do contratado como das demais pessoas que já pertencem ao quadro funcional da empresa contratante, mas certamente esse é um custo muito menor do que o que as empresas vêm pagando em multas, como penalidade pelo não cumprimento da lei de cotas. Isso tudo leva a pensar que na realidade a questão pode estar muito mais relacionada à discriminação e ao preconceito do que à condição econômica das corporações.

A base para essa afirmação vem de alguns simples cálculos. De um lado temos a informação da Rais de que a média salarial das pessoas com deficiência contratadas é de R$ 1.922,90 e que com os encargos cada funcionário pode custar para a empresa R$ 3.807,34 por mês (sem incluir os possíveis benefícios oferecidos). De outro, considerando que o valor mínimo legal da multa por pessoa com deficiência não contratada é de R$ 1.523,57 e que sobre esse valor há um acréscimo que varia de 20% a 50%, de acordo com o percentual de cota a ser cumprido pela empresa (2% para as que têm até 200 empregados a 5% para as que têm acima de 1.000), podemos fazer o seguinte cálculo: R$ 1.523,57 mais R$ 761,79 (contando que o acréscimo será de 50%, pegando o exemplo de uma empresa com mais de 1001 funcionários) temos um total que poderá ser de R$ 2.285,36 de multa por pessoa com deficiência não contratada por dia (determinação que cabe ao auditor fiscal). Com isso, em 30 dias, a empresa paga em multa equivalente a 18 meses de salário de uma pessoa com deficiência contratada, R$ 68.560,65.

Ainda em relação às multas é importante ressaltar a iniciativa da Procuradoria Regional do Trabalho - 2ª Região (PRT2), do Ministério Público do Trabalho, que tem dado opção às empresas de reverter os valores relativos às multas em doações para benefício das pessoas com deficiência. Desde 2010, a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo tem recebido alguns desses recursos por meio do Programa Saúde da Pessoa com Deficiência, para aparelhar os hospitais municipais com equipamentos de ponta.

Foi assim que cerca de R$ 1 milhão - soma das multas de três empresas com mais de mil funcionários - foram revertidos na doação de dois equipamentos de ultrassom 4-D, um para o Hospital e Maternidade Escola Dr. Mário de M. A. da Silva, em Vila Nova Cachoeirinha (zona Norte) e outro para o Hospital Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca (zona Leste); 13 Cardiotacógrafos, sendo 12 para a Central de Monitoramento Fetal do Hospital Cachoeirinha e um para o Hospital Prof. Dr. Alípio Correa Neto, em Ermelino Matarazzo; e um carro elétrico para transporte de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida para o Hospital Cachoeirinha.

Por tudo isso, é curioso notar que muitas dessas mesmas empresas que não cumprem a lei de cotas e já sofreram com as penalidades previstas, apoiam e/ou desenvolvem projetos e ações de responsabilidade social, algumas vezes até distantes da comunidade onde estão inseridas, e editam anualmente elaborados relatórios de "Balanço Social", nos quais contabilizam seus feitos em benefício de uma parcela da sociedade.

Cabe aqui, portanto, questionar: qual é efetivamente o papel social das organizações? Não é, principalmente, o de oferecer oportunidade de trabalho a quem não tem emprego? Promover a empregabilidade de pessoas com deficiência não seria, então, a melhor ação social de uma empresa?

É preciso derrubar, definitivamente, as barreiras subjetivas que impedem a expansão do mercado de trabalho para as pessoas com deficiência, fazendo com que os empresários, dos mais diversos ramos de atividade no país, deixem de subestimar a capacidade da força de trabalho desses cidadãos.

Marcos Belizário é advogado e secretário municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo