Título: É hora de Dilma fazer o certo no combate à corrupção
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2011, Opinião, p. A12

O professor Delfim Netto costuma dizer que os números, sob tortura, confessam qualquer coisa. Com a devida licença do professor, economista, ex-ministro e ex-deputado, este não é definitivamente o caso da chamada base governista do governo, cujo comportamento no primeiro semestre legislativo exibe números tão plácidos que é impossível não enxergar a maquete do edifício que é a aliança política da presidente Dilma Rousseff. Coalizão regida por uma partitura não necessariamente ideológica ou simplesmente programática.

Conforme publicou o Valor em sua edição da última segunda-feira, nenhum projeto de interesse do governo deixou de receber os "sim, senhor" dos ilustres congressistas, como se todos eles, do PT ao PP, o sucedâneo legítimo da antiga Arena, o partido de apoio do regime militar, fossem regidos pela mesma partitura ideológica.

Mas havia sim partitura: basta conferir o noticiário dos últimos dias para verificar que os números das votações no Congresso falam por eles mesmos, e são de fazer inveja a ditadores que não raro batem a casa dos 80% aproximadamente dos votos em eleições de cartas marcadas.

Os números falam por eles mesmos quando alguém resolve prestar atenção num aditivo maroto em uma obra contratada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura, atual Dnit, cuja imagem já está tão carcomida como a de seu antecessor, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o famigerado DNER.

Os números falam por si mesmo, quando o irmão do líder do governo (e que antes já fora líder do PMDB), o fidelíssimo Romero Jucá (ele também passou pelo PMDB), diz que a Conab é um covil de corrupção. A Conab, como se recorda, já foi uma das estrelas da coroa das indicações do PTB. É cansativo repetir, mas o fim de semana ainda mostrou espertezas no Ministério das Cidades, na Agência Nacional de Petróleo (ANP) e na sempre desejada Fundação Nacional de Saúde (que trocou de mãos e passou do PMDB para o PT).

Em quase toda essa torrente de votos há uma relação com a indicação de um afilhado político por um dos partidos da base aliada. Quando alguém falta à sessão de votação, pode se ter certeza: o congressista está insatisfeito porque não conseguiu imprimir o nome do afilhado nas páginas do Diário Oficial ou ter liberada a verba do Orçamento. Para não ir à sessão e votar contra o governo, arruma uma desculpa para faltar.

Só para citar alguns números, o apoio a Dilma no Senado superou os 80% dos votos. Uma enxurrada. O partido que menos colaborou foi o PR, com seus 61,02% de adesão aos projetos de interesse de Dilma.

A própria formatação do Estado brasileiro favorece a formação de grupos para a captura do Estado em favor de seus interesses. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência, em 2003, havia 18,3 mil cargos de livre nomeação no aparelho burocrático brasileiro. Hoje eles já somam 21,7 mil, um número capaz de levar até o ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, a fazer uma penitência pública.

Para Dirceu, as indicações partidárias deveriam ficar restritas às mudanças no primeiro escalão, nas trocas de governo. É que a partir do segundo e terceiro escalões o número das indicações deveria ser o menor possivel, restrito às qualificações técnicas dentro do quadro de carreira.

O mesmo homem que foi acusado de aparelhar o Estado brasileiro, diz hoje que os cargos de confiança devem de ser ocupados por funcionários de carreira. "Fora disso, tem de ser exceção e não regra".

Dirceu acha normal que o Partido dos Trabalhadores tenha nomeado um terço da burocracia não concursada (os tais cargos de livre provimento) com gente de fora do quadro funcional - em resumo, do PT e dos demais partidos aliados.

Em favor da presidente República, deve-se ressaltar que ela não inventou a estrutura que mantém de pé o edifício petista. É coisa antiga, embora sem a voracidade, a extensão e códigos próprios atuais. Nas últimas semanas, Dilma até deu demonstrações de querer desconstruir a obra que recebeu pronta, mas tem usado pesos e medidas diferentes em suas decisões. A presidente tem a oportunidade e a solidariedade dos brasileiros. Chegou a hora dela fazer o que deve e o que é certo.